segunda-feira, 9 de abril de 2018


Um sequestro inesquecível

Aconteceu na cidade de Nazaré das Farinhas. O time era o Misererenóbis Futebol Clube. A escalação: Capenga, Tonho Doido, Bilau e Coceira. Zé Sapateiro e Alecrim. Nenga, Cabeça-de-Nego, Desvairado e Timbu. O esquema de jogo era o 4-2-4, como nos velhos tempos. Lateral não era ala. Não tinha um líbero, todo mundo corria. E tinha beque, ponta de lança, essas coisas.
O Miserê – assim carinhosamente chamado pela torcida – era o terror interiorano. Líder do campeonato intermunicipal de equipes, derrotara, naquele ano, todos os adversários, inclusive o glorioso Esporte Clube Berimbau, de Feira de Santana.
Os onze – não havia reserva; se alguém se machucasse, o time jogava no prejuízo – guerreiros de Nazaré embarcaram no sábado pela manhã para Cruz das Almas. A decisão do título seria na tarde do dia seguinte, com o vigoroso Cruzmaltense. A viagem de ônibus durava pouco mais de uma hora, mas era melhor embarcar na véspera, para no dia estarem todos bem descansados.
O sequestro inesquecível foi perpetrado na sexta-feira, depois da meia-noite. Letícia era filha de Seu Joaquim, português que esbarrou em terras baianas por engano e acabou importante proprietário da única mercearia da cidade e com status de quase prefeito.
O atleta miserenobense Zé Sapateiro cultivava um olho grande para cima da menina, há muito tempo. E era correspondido: o olhar de Letícia formava, com o dele, uma linha de passe bem legal.
Zé combinou com os demais companheiros de equipe se juntar ao time em Cruz das Almas, pois precisava embarcar mais cedo. Então passou a mão em Letícia e se mandaram, escondendo a moça em casa de um correligionário, lá mesmo em Cruz. No sábado ao meio-dia já estava com os companheiros, com cara de sonso, fazendo gestos diante das notícias:
– Sequestraram Letícia, filha de Seu Joaquim.
– Não diga!
– O português garante que vai matar o sequestrador.
– Ele está certo.
– Mas diz que antes vai capar o infeliz.
– Nossa Senhora!
Alguém denunciou, como era de se esperar. Seu Joaquim manteve a polícia longe do caso, encheu a espingarda de chumbo e viajou no domingo para a cidade da grande decisão. Foi direto para o estádio e pulou a cerca que separava os craques da torcida, atirando feito um doido.
Letícia também pulou a cerca e se ajoelhou diante do pai, chamando o velho à razão com essa pérola:
– Faz isso não, pai. O Miserê tá perdendo o jogo e Zé Sapateiro, jogando um bolão, é a nossa única esperança de empate e, depois, de vitória!
Seu Joaquim resolveu, em nome do espírito esportivo, pensar duas vezes, adiar a contenda, deixando a vingança para depois do jogo. Sentou-se em um banquinho de madeira na arquibancada improvisada e começou a torcer também.
Zé meteu um golaço e deu outro de bandeja para Alecrim marcar e virar o jogo, garantindo o título e conquistando, também, o coração do sogro.
Voltaram todos para Nazaré festejando, dando tiros de comemorações para o alto, com a espingarda do português, e anunciando o fim do sequestro: sem sangue, sem resgate, sem uma linha sequer nos jornais.
(Do livro "O gandula que comeu a bola". Editora Dimensão, 2014)
     

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