sábado, 28 de dezembro de 2019


Eastweek em Botafogo


     Foi num reveillon que passou. Ela estava deitada ao meu lado no sofá, que ficava na sala da minha casa, mas não sei como havíamos chegado ali. Pela janela do apartamento, na Rua São Clemente, via-se as luzes do Morro Dona Marta e mais algumas ruas de Botafogo. Via-se o brilho e quase ouvia-se o pipocar dos fogos na Lagoa. Imaginava-se o que poderia estar acontecendo nas areias de Copacabana.
     O vento invadia a sala pelas frestas da janela e fazia balançar os xaxins pendurados no teto. Às vezes era um cheiro de enxofre e temores. Às vezes o gosto horrível da mistura de cigarro e conhaque. As luzes do Morro Dona Marta não me diziam muita coisa, pois era um tempo em que eu ainda não tinha medos. Primeira vez que deitávamos no sofá, era a primeira vez que deitávamos juntos onde quer que fosse, primeira vez que eu via aquela mulher.
     Começou a me contar As bruxas de Eastweek, que assistira recentemente, e estava muito empolgada com a coragem e ousadia das mulheres-bruxas no filme, com o talento e a sensualidade do Jack Nicholson no filme, com a cor, a luz, a fotografia do filme, tudo muito sombras, uivos, ventos muito fortes e nevoeiros. Ela estava com a cabeça encostada em meu ombro e eu não tirava os olhos da janela. Também não tirava o ouvido de sua cabeça, de onde pareciam vir os barulhos de carros lá embaixo, do vento gritando lá fora. Falava e falava sem parar do filme, as maestrias todas do roteiro, do diretor e dos atores, e o meu braço repousava dormente sob o seu ombro. Minha mão encostou inocentemente em seu peito e aí pareceu que o vento soprou mais brando, que o mundo já não ia se acabar.
     Então fui até a janela e acompanhei atentamente os movimentos de um avião que circulava o Pão de Açúcar antes de apontar o bico para o Aeroporto Santos Dumont, como se o 31 de dezembro fosse um dia qualquer. Deu vontade de viajar, lugares distantes, essa tal de Eastweek, quem sabe. Freada brusca e alguém gritando “quer morrer, filho da mãe, olha por onde anda”, ela falando, falando, falando. Comecei a alisar o seu peito e minha mão suava muito. Lembrei que precisava aparar as unhas e apertei o bico do seu peito. Que ficava duro, pontudo e enrugado nas pontas dos meus dedos. Seu sexo era o mundo à minha espera. Morcegos e vampiros me convidavam insistentemente a entrar. Eu já não sentia qualquer inveja do cretino do Jack Nicholson.
     Sabia que o vento ia voltar com toda a febre, que minhas plantas morreriam de susto, mas era último dia do ano e me agarrei em seus cabelos, que tinham um cheiro bom. Seu peito tinha um cheiro bom, não me importava que ela desse cabo de todo o conhaque, de todo o meu cigarro, depois desaparecesse como desapareceu, sem abrir a porta, enquanto eu adormecia entre o gozo e o delírio e abria os olhos muitas horas depois para o sol terrivelmente carioca no primeiro dia de um novo ano, para a dormência da rua e a poeira das obras do Metrô.
     O susto no olhar do porteiro me levou a encarar o espelho da recepção: não havia um pingo de sangue em meu corpo, mas eu ainda buscava nos bolso um endereço que a trouxesse de volta.    
     Eu sei que Eastweek é um bocado longe daqui.

 (Do livro "Grande homem mais ou menos", Editora Bertrand Brasil, 2007)



sexta-feira, 6 de setembro de 2019

O gato, o rato e o pacto de paz
(Conto infantojuvenil)


Gatão era um gato graúdo,
forte, feroz e peludo.

Ratinho era um rato miudinho,
de pernas curtas e olhos apertadinhos.

Só que o Gatão, muito sisudo,
não gostava de bicho miúdo.

Ratinho detestava confusão
e morria de medo de Gatão.

Botava o focinho pra fora do buraco apertado
e lá estava o perigo, olhando-o enviesado.

Com aquele jeitão esganado
de se eu te pego, tu tá ferrado.

Ratinho era um bicho de paz,
só queria viver bem, nada mais.

Mas Gatão não pensava assim,
embora também não fosse ruim.

A perseguição não era por maldade ou safadeza,
apenas ação e reação da própria natureza.

Até o dia em que Ratinho tomou uma decisão:
“Vamos resolver logo essa situação”!

Gatão achou a frase um abuso,
mas a firmeza do outro o deixou confuso.

“O que você está dizendo, rato insolente?
Desafiando-me, frente a frente”?

“De jeito algum”, disse Ratinho, em bom português.
“Quero é acabar com essa história de uma vez”.

“Você não gosta de mim, nem precisa gostar.
Mas podia ao menos me respeitar”.

Gatão abriu um sorriso,
que mostrou até o dente siso:

“Respeitar você, roedor,
um rato sem nenhum valor”?

“Não seja racista, não venha com falcatrua!
Minha raça é a minha força, a sua raça é a sua”!

“Não adianta querer falar bonito...
Num rato soa até esquisito”.

“Cai na real, Gatão!
Tira o preconceito do seu coração”.

E disse mais, Ratinho, exaltado,
pois naquele dia estava muito inspirado:

“O ódio é o pior sentimento da terra.
A intolerância é mãe de todas as guerras”.

Por incrível que pareça, a frase mexeu com o gato,
que se impressionou com a firmeza do rato.

“Sempre dá pra conviver”, disse Ratinho.
“Basta cada um seguir o seu caminho”.

“Pare pra pensar: que mal eu lhe fiz”?
“Não lembro”, respondeu Gatão, coçando o nariz.

Sentindo que ganhava espaço,
Ratinho foi soltando o laço:

“O mundo está cheio de seres se estranhando.
Quando acaba a briga, nem sabe por que estão brigando”.

“Violência, maldades, até mortes se dão,
quando se põe a arrogância um passo à frente da razão”.

“Você quer provar o quê? Que é mais forte do que eu?
Nem precisa mostrar. O mundo já percebeu”.

Gatão já estava nervoso, coçando os fios do bigode:
“Rato filósofo? Como é que pode”?

E prosseguiu, na prosa desconfiada:
“Onde você quer chegar, com essa conversa manjada”?

Ratinho, que já estava embalado,
não perdeu o rebolado:

“Não é nada demais:
apenas propor um pacto de paz”.

“Que assunto é esse, rato ousado?”,
perguntou o gato, de pelo eriçado.

“Não seja ignorante, Gatão.
É apenas um tratado de não-agressão”.

“Está brincando comigo, insignificante ratinho?
Acha que agora vou virar seu amiguinho”?

“Não, Gatão. Nem tapa nem beijo!
Eu não provo do seu leite; você não trisca no meu queijo”.

“E o que ganho com isto?”, perguntou o gato, interessado.
Ratinho se adiantou: “Vai viver menos estressado”!

“Esqueça que tem inimigo,
afaste da vida esse castigo”.

“Vai acordar com mais alegria,
ao lembrar que não cometeu qualquer covardia”.

“Seus olhos vão brilhar mais, seu pelo vai crescer,
e o amor nesse coração felino ainda vai renascer”.

Gatão ficou calado, pensando, pensado:
“Tem certeza de que não está me enrolando”?

Ratinho, então, insistiu,
convincente como nunca se viu:

“Se vai dar certo, Gatão, não posso afirmar.
Mas vamos, ao menos, experimentar”.

“Tá bem”, disse o gato. “Também não posso prever.
Mas prometo, ao menos, pagar pra ver”.

E essa foto vai ficar para a posteridade:
os dois apertando as patas, em sinal de amizade.

Será que vai dar certo? Vai imperar a união?
Não sabemos, decerto. Mas valeu a intenção.



Fim


(Editora Cortez, 2019)


quinta-feira, 18 de julho de 2019


Irmandade

     Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.
     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.
     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.
     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.
     — Cirrose — disse ele.
     — Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.
     — Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.
     O doutor era um sujeito engraçado.
     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.
     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.
     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.
     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que aumentava.
(Do livro "Contos da vida absurda". Editora Casarão do Verbo, 2014)



sexta-feira, 21 de junho de 2019


Gertrud

      Conheci Gertrud numa casa de shows na Lapa carioca. A noite fervia, com muito samba no palco e gente animada, cantando e dançando no salão. Ela estava com amigos, em uma mesa ao lado da minha. Fui me aproximando e me apaixonando aos poucos. Primeiro pela maneira sensual com que a loura de olhos claros e cabelos escuros mordia os pasteizinhos de carne e grunhia (sempre achei que alemão fala grunhindo, desde os filmes de guerra a que assistia na infância):
Exprêêndidô!
A linda moça entornava chope com disposição típica dos povos germânicos e derramava corajosamente molho de pimenta no petisco, o que a deixava com as bochechas vermelhas e os olhinhos cheios d´água.
Esplêndida.
Depois me apaixonei pelo sotaque (me apaixono fácil por sotaques em vozes femininas, seja alemão, libanês, cearense), enquanto Gertrud acompanhava o som que vinha do pequeno palco e entoava, com delicada alegria:
“Vixto assim do arrto, mas parrece um ceô no chão... Em Mangueirra a poesia...”
Como resistir?
Os dias eram de véspera da Copa do Mundo de 2014, aquela mesma, a fatídica, mas a minha amada germânica não estava aqui por causa do futebol (não gostava nem um pouco do esporte, para o qual se dizia sem “tolerrância” nem “disposición”). Cursava uma espécie de pós-graduação numa universidade pública e fazia pequenos serviços de tradução, para se sustentar por aqui.
No primeiro encontro a dois, em minha casa, vivi a primeira pequena decepção: Gertrud não só não tinha o menor interesse por futebol, como o detestava. O torneio mundial corria solto e, fanático que sou desde menino pelo esporte bretão, assistia a todos os jogos pela tevê. Àquela altura do campeonato, ela já se esforçava para falar sem sotaque, o que demonstrava certa inclinação para me cativar. Essa disposição já facilitava um pouco as coisas.
Chegou-se com jeitinho brasileiro, até estranho para uma representante de povo tão duro, seco e objetivo:            
‒ Que jogo é esse, querido?
‒ México e Camarões!
‒ Vai ver inteiro?
‒ Pretendo, meu amor.
‒ Jura?! México e Camarões?!
‒ Você não entende de futebol, Gertrud. Isso é jogão. Senta aqui, vai! Assiste um pouquinho.
Silêncio… Minutos depois:
‒ Pronto. Já assisti.
‒ Gostou?
‒ Adorei.
‒ De que você gostou mais?
‒ Das pernas desse jogador camaronês.
Pausa. Depois ela disse:
‒ Vamos pra Lapa, beber cerveja e dançar?
‒ Alemão só pensa em beber cerveja e dançar, não é?
‒ Não. Pensa em namorar também.
‒ Ah, bom!
‒ Vamos namorar?
‒ Agora?
‒ Depois do jogo.
‒ Aí tem outro jogo.
‒ Ah, é? Qual?
‒ Espanha e Holanda.
‒ E você vai ver também?
‒ Claro!
‒ Mas você não é nem espanhol nem holandês...
‒ Não seja boba. Em Copa do Mundo todo jogo é importante.
‒ Então, vamos beber cerveja e dançar, depois de Espanha e Holanda?
‒ Sem chance. Tem Costa do Marfim e Japão.
‒ Não acredito!
‒ Não acredita em quê?
‒ Que você vai ver Costa do Marfim e Japão.
‒ Claro que eu vou! E vou torcer pros japoneses.
‒‒  Eu nem sabia que japonês jogava futebol.
‒Não jogavam. Mas se tornaram experts, depois que o Zico andou como treinador por lá.
‒ Quem é Zico?
‒ Nunca ouviu falar no Zico, o Galinho de Quintino?
‒ Não, de jeito nenhum.
– Meu Deus! Você não entende nada de Brasil nem de futebol brasileiro!
‒ Mas estou começando a entender de você. Não vai levantar mais desse sofá hoje, é isso?
‒ Nos intervalos dos jogos, para fazer xixi, claro!
‒ Não vai nem comer?
‒ Aquela salsicha com molho tártaro e mostarda preta deliciosa que uma moça gentil vai preparar para mim… Isso eu quero!
‒ Não faço comida para homem preguiçoso, detesto machismo!
‒ Foi só uma brincadeirinha, fräulein!
Ela não perdia uma deixa:
‒ Tá. Sairemos no fim de semana, então? Poderemos ouvir música e dançar samba no Trapiche Gamboa… Ou ir à roda de samba do Bip Bip, que dizem estar entre as melhores da cidade…
‒ É a melhor da cidade, do país e do mundo, Gertrud. Mas domingo é dia dos melhores jogos desta Copa. Lamento!
A disputa prosseguia nos gramados, com jogos cada vez mais duros. Dura, também, era a marcação de Gertrud, cada vez mais acirradas. A Seleção, com o seu ataque ,que comecei a chamar de ataque dos nervos, prosseguia nos gramados, em boa medida graças a algumas defesas adversárias. Chegamos às semifinais, e a insistência da moça não saía de campo:
‒ Já sei. Iremos na terça-feira. Terça é dia tranquilo, o Carioca da Gema fica quase vazio e perfeito para se beber, dançar e namorar.
‒ Terça-feira? Justo nesta terça-feira? Pirou de vez> Viajou na salada de batata com cerveja quente, foi? É dia de grande semifinal!
‒ Ah, é? E quem vai disputar essa semifinal?
‒ Ora, Brasil e Alemanha. Nossa seleção de ouro vai triturar os seus patrícios, menina, sem dó nem piedade!
Aí o sotaque voltou com tudo:
‒ Verremos! Verremos entón quem vai vencerrrrrr!
A terça-feira, dia 8 de julho de 2014, começou esquisita. Nublada e neurótica. A manhã se arrastou em meio a um pesaroso mormaço, e à tarde o time do Brasil entrou no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, meio descadeirado. A vértebra fraturada do Neymar pelo zagueiro colombiano, em partida válida pelas quartas de final, não só o tirou da partida como aleijou a coluna vertebral de toda a equipe canarinho. Os conterrâneos da doce Gertrud estavam salgados e dispostos a estragar a nossa feijoada comemorativa. Schweinsteiger, Khedira, Kroos, Özil e Müller se mostraram infernais. Miroslav Klose, que chegara na competição aos 16 gols e batera o recorde de Ronaldo, como maior artilheiro das Copas, era o capeta-maestro, dono do tridente, dos chifres e do rabo maior para surrar nossa defesa.
Gertrud me pediu, com antecedência, para levar à minha casa, para ver o jogo, “um grupinho de três ou quatro” alemães, amigos seus, que como ela também não tinham família nem conhecidos no Rio de Janeiro.
‒ Somos os desgarrados, ressaltou ela, dobrando todos os erres.
Não vi inconveniente em encher a minha sala de adversários e dividir a televisão com eles. Tudo em nome da solidariedade, da amizade, do espírito esportivo e, sobretudo, da deliciosa Gertrud.
Uma hora antes do jogo eles chegaram, trazendo cervejas, vodca, chucrute e salsicha para tira-gosto, pães, muitos pães, além das inacreditáveis bandeiras, camisas e bonés nas cores da seleção alemã. Considerei um abuso, é claro, mas fiz vista grossa, mais uma vez em nome da hospitalidade brasileira.
Antes do jogo começar eu já estava achando a torcida inimiga (logo, logo tornou-se inimiga) um pouco ruidosa para o meu gosto, o que me fez silenciar e passar pelo constrangimento de ser minoria dentro de minha própria casa. Claro que me arrependi por ter aceitado o pedido de Gertrud, quando me vi acossado por aquele bando de gringos. Mas pensei: deixa o jogo começar, o Brasil meter logo duas ou três bolas na caçapa, que eles baixam a crista.
Amarga ilusão.
O futebol, como se sabe, tem essa capacidade de fazer o torcedor não enxergar a realidade e, o que é pior, de fazer uma antidesportista convicta – como era o caso do meu amor alemão – se transformar em torcedora apaixonada. Foi o que aconteceu naquela tarde, para mexer com os meus nervos e mudar os nossos destinos.
Ah, os destinos!
Se ainda me recordo bem, o jogo começou às cinco da tarde. Dez minutos depois teve início o sofrimento que parecia não ter fim, com a primeira bola invadindo as redes do nosso trêmulo e desesperado goleiro. Só no primeiro tempo meteram logo mais quatro gols, um atrás do outro, aos vinte e dois, aos vinte e três, aos vinte e cinco e aos vinte e oito minutos do primeiro tempo. No segundo tempo enfiaram mais dois, antes de pisarem o pé no freio, como se a humilhação não já estivesse sacramentada.
No primeiro gol deles, os meus “convidados” vibraram discretamente, demonstrando algum respeito pelo anfitrião. À medida  que o massacre ia se desenhando, eles se soltavam, urrando expressões que eu desconhecia, mas que provavelmente eram de palavrões próprios dos estádios alemães, brindando, sorrindo, esmurrando a mesa e escalando meu sofá com suas patas aroamas Claro que à essa altura eu também não poderia mais manter qualquer elegância.
Senti uma profunda vontade de expulsar a vassouradas aquele esquadrão nazista, mas me contive; o amor acovarda a gente.
Só no final do jogo fizemos o nosso golzinho de honra.
Honra de Pirro, claro.
Quando o juiz apitou pela última vez e a lambança acabou no Estádio do Mineirão, a confusão começou em minha casa. Os alemães pareciam estar novamente invadindo territórios alheios em período de guerra, agitando bandeiras, tocando cornetas, subindo no sofá e gritando da janela.
Penso que a vodca e a cerveja quentes subiram à cabeça dos bárbaros que começaram a se sentir em território medieval.
Sempre ouvi dizer que o amor a tudo supera. Até aquele dia.
Orgulho próprio e sentimento de torcedor ofendido, entrei em campo. Expulsei a “alemoada” de minha casa, sem dó nem piedade, muito menos consideração ou nobreza de sentimentos.
Espírito esportivo é o cacete!
Saíram pelas ruas do Rio de Janeiro, comemorando a goleada brilhante como se estivessem em Berlim. Pedi a Gertrud que ficasse comigo, o desabafo não era extensivo a ela, mas a ingrata preferiu ser solidária com o bando de invasores. Sumiu de minha vida batendo portas, para nunca mais voltar.
Fechei a porta, abaixei a cabeça, peguei vassoura e panos de chão e me lancei ao trabalho de colocar minha casa em ordem. Desliguei imediatamente a tevê, claro, pois não havia qualquer interesse naqueles comentários.
Vez em quando ainda dou uns bordejos pelas imediações da Lapa, entrando e saindo de casas noturnas, na esperança de bater o olho naquela linda “alemoa”. Agora, que mais uma Copa do Mundo mexe com os meus sentimentos, volto a me instalar diante do aparelho, sozinho no mundo e no meu sofá preferido. A seleção brasileira está entrando em campo novamente, o coração de torcedor volta a bater forte e uma lembrança amarga, bem amarga, loura de olhos claros e cabelos escuros vem com ela e se instala em meu peito.


quarta-feira, 29 de maio de 2019


Acidente em uma noite de chuva

     Que barulho foi esse?
     Acho que atropelamos alguém ou alguma coisa. Um gambá ou um cachorro.
     Só pode ter sido um cachorro. Nunca vi gambá por aqui.
     Claro que você nunca viu gambá por aqui. Você nunca passou por aqui.
     Tomara que não tenha sido uma pessoa.
     Vi o vulto. Muito pequeno para uma pessoa.
     Então, você matou um cachorro.
     Se matei foi sem querer. Está escuro pra cacete. Com essa chuva piora. E a estrada é uma porcaria.
     Não acredito. Você mata um cachorro inocente e reage assim?
     Assim, como?
     Com essa calma.
     Devo fazer o quê? Me jogar embaixo do carro para morrer junto com o cachorro? De mais a mais, que bobagem é essa de cachorro inocente? Todo cachorro é inocente.
     Como é que você sabe?
     Sei o quê?
     Que todo cachorro é inocente.
    Por quê? Você conhece algum cachorro culpado? Culpado de quê? Cachorro carrega culpas, se penitencia, tenta o suicídio? Será que esse tentou o suicídio hoje?
     Acho que não. Mas você deveria carregar a culpa, uma puta de uma culpa por ter tirado a vida de um ser, friamente.
     Friamente?! Foi um acidente, caramba! Uma porra de um acidente. Está escuro, chovendo, o bicho atravessou a estrada.
     Bicho?
     Bicho. Nem sabemos ao certo se é mesmo um cachorro.
     Como assim, “se é mesmo um cachorro”?
     Pode ser uma raposa, um macaco, um veado, uma onça, um tatu!
     Tatu?
     Por que não? Estamos numa estrada quase deserta. Tem mato pra todo lado. Por que não pode ter um tatu e o filho da puta do tatu resolver atravessar a estrada justo na hora em que passamos nessa porra dessa estrada, com essa bosta desse carro de faróis ruins, limpador de pára-brisa fodido, e praticamente sem freios?
     O carro está praticamente sem freios?
     Pastilha gasta, sei lá.
     Você pega uma estrada desconhecida com um carro sem freios e ainda me convida para participar da aventura?
     Não convidei você. Você se ofereceu para vir comigo.
     Não senhor. Você disse “quer vir comigo, venha”.
     Eu disse quer vir comigo, venha, porque você já tinha se oferecido.
     E daí? Isso justifica?
     Justifica o quê, meu cacete?!
     Vê como fala comigo! Quero saber se isso justifica você meter o carro em cima de um pobre de um cachorro que não tinha nada que ver com o seu desespero.
     E eu estou desesperado, por acaso? Atropelei esse infeliz de caso pensado, por acaso?
     Infeliz? A vítima agora é que é infeliz?
     Maneira de falar.
     Infeliz não é o cachorro, não. Infeliz é você, que vai hospedar essa mancha na alma para o resto da vida.
     Não vou hospedar mancha nenhuma. Já disse que não tive culpa desse acidente.
     Acidente?! Já percebeu que é sempre assim?
     Sempre, como? Assim, o quê?
     As barbaridades, a violência, os desatinos, as atitudes deploráveis são sempre justificados como se fossem acidentes. Os assassinos modernos são todos personagens de acidentes.
     Assassino!? Eu sou um assassino?
     Sei não. Pergunte à sua consciência.
     Já disse que não tenho culpa, merda!
     Entendi. Culpado é o cachorro.
     Pára de falar bobagem e faz alguma coisa.
     Fazer o quê? Eu não matei ninguém.
     Pega o cachorro e põe no banco de trás. Pode ainda estar vivo. Se estiver, levamos a um veterinário.
     Levamos, não. Você leva. E não vou pegar nenhum cachorro morto ou moribundo. Essa função é, por lei, do atropelador.
     Está bem, imprestável. Vou pegar.
     ...
     Merda! Mil vezes merda.
     Não trouxe por quê? Já está morto?
     ...
     Não era um cachorro?
     ...
    Uma pessoa? Meu Deus.
    Era um toco de madeira podre.
    Que porra fazia um toco de madeira podre no meio de uma estrada, numa noite de chuva, com tanto maluco que tem por aí nos volantes?
     ...
     Estou falando com você. O cachorro comeu sua língua?
     ...
     Vamos seguir, ainda temos muito chão pela frente.
     Mais alguma recomendação?
     Os tocos. Cuidado com eles.



segunda-feira, 29 de abril de 2019


O homão e o menininho (uma fábula)

      Era uma vez um menininho muito magrinho e pequenino. Desses que não engordaram porque comeram pouco quando eram menores ainda. Desses que têm menos idade do que aparentam e são bem menores do que poderiam ser, considerando a idade que têm.
     O menininho saía de casa bem cedo, carregando uma mochila cheia de livros, cadernos e umas bolas de tênis bem velhas, encontradas num lixo qualquer. Os livros e cadernos eram para uso na escola, mas antes da aula ele parava no sinal de trânsito e sacava os instrumentos de trabalho. Toda vez que o sinal ficava vermelho o menino pulava na frente dos carros, jogando as bolas para cima e para baixo, de um lado para outro, levantando com uma mão e aparando com a outra. O menino pensava que estava oferecendo um espetáculo circense e que por isto merecia uns trocados. Alguns motoristas achavam bonitinho e engraçado e davam umas moedas para ele. Outros não davam a menor atenção, nem mesmo um sorriso.
     O menininho fazia isto porque era muito pobrezinho. Pobrezinho mesmo, que nem esse monte de menininhos que anda bestando aí pelas ruas nas grandes cidades. E era muito feinho. Magrinho, pobrezinho, feinho e desdentadinho. Tinha apenas uns dois ou três dentinhos, todos bastantes esburacados e em péssimo estado de conservação. Andava esculhambadinho que só vendo. Aquelas roupinhas esfarrapadas, com uns remendos na bundinha e nas costas, uma lástima.
     Um dia, o meninninho  vinha distraído por uma calçada, contando as moedas e planejando as futuras investidas no sinal, quando deu de cara com um homão grandalhão. Um homão grandalhão e gordão, bem barrigudão, com os dentões todos na boca. Passou a mão enorme na cabeça sujinha do menininho e perguntou:
 – Garoto, quem é teu pai?
O moleque abriu um sorrisinho bem safado e respondeu:
 – O senhor!
(Do livro "O homão e o menininho", Editora Abacate, 2010)