quarta-feira, 29 de maio de 2019


Acidente em uma noite de chuva

     Que barulho foi esse?
     Acho que atropelamos alguém ou alguma coisa. Um gambá ou um cachorro.
     Só pode ter sido um cachorro. Nunca vi gambá por aqui.
     Claro que você nunca viu gambá por aqui. Você nunca passou por aqui.
     Tomara que não tenha sido uma pessoa.
     Vi o vulto. Muito pequeno para uma pessoa.
     Então, você matou um cachorro.
     Se matei foi sem querer. Está escuro pra cacete. Com essa chuva piora. E a estrada é uma porcaria.
     Não acredito. Você mata um cachorro inocente e reage assim?
     Assim, como?
     Com essa calma.
     Devo fazer o quê? Me jogar embaixo do carro para morrer junto com o cachorro? De mais a mais, que bobagem é essa de cachorro inocente? Todo cachorro é inocente.
     Como é que você sabe?
     Sei o quê?
     Que todo cachorro é inocente.
    Por quê? Você conhece algum cachorro culpado? Culpado de quê? Cachorro carrega culpas, se penitencia, tenta o suicídio? Será que esse tentou o suicídio hoje?
     Acho que não. Mas você deveria carregar a culpa, uma puta de uma culpa por ter tirado a vida de um ser, friamente.
     Friamente?! Foi um acidente, caramba! Uma porra de um acidente. Está escuro, chovendo, o bicho atravessou a estrada.
     Bicho?
     Bicho. Nem sabemos ao certo se é mesmo um cachorro.
     Como assim, “se é mesmo um cachorro”?
     Pode ser uma raposa, um macaco, um veado, uma onça, um tatu!
     Tatu?
     Por que não? Estamos numa estrada quase deserta. Tem mato pra todo lado. Por que não pode ter um tatu e o filho da puta do tatu resolver atravessar a estrada justo na hora em que passamos nessa porra dessa estrada, com essa bosta desse carro de faróis ruins, limpador de pára-brisa fodido, e praticamente sem freios?
     O carro está praticamente sem freios?
     Pastilha gasta, sei lá.
     Você pega uma estrada desconhecida com um carro sem freios e ainda me convida para participar da aventura?
     Não convidei você. Você se ofereceu para vir comigo.
     Não senhor. Você disse “quer vir comigo, venha”.
     Eu disse quer vir comigo, venha, porque você já tinha se oferecido.
     E daí? Isso justifica?
     Justifica o quê, meu cacete?!
     Vê como fala comigo! Quero saber se isso justifica você meter o carro em cima de um pobre de um cachorro que não tinha nada que ver com o seu desespero.
     E eu estou desesperado, por acaso? Atropelei esse infeliz de caso pensado, por acaso?
     Infeliz? A vítima agora é que é infeliz?
     Maneira de falar.
     Infeliz não é o cachorro, não. Infeliz é você, que vai hospedar essa mancha na alma para o resto da vida.
     Não vou hospedar mancha nenhuma. Já disse que não tive culpa desse acidente.
     Acidente?! Já percebeu que é sempre assim?
     Sempre, como? Assim, o quê?
     As barbaridades, a violência, os desatinos, as atitudes deploráveis são sempre justificados como se fossem acidentes. Os assassinos modernos são todos personagens de acidentes.
     Assassino!? Eu sou um assassino?
     Sei não. Pergunte à sua consciência.
     Já disse que não tenho culpa, merda!
     Entendi. Culpado é o cachorro.
     Pára de falar bobagem e faz alguma coisa.
     Fazer o quê? Eu não matei ninguém.
     Pega o cachorro e põe no banco de trás. Pode ainda estar vivo. Se estiver, levamos a um veterinário.
     Levamos, não. Você leva. E não vou pegar nenhum cachorro morto ou moribundo. Essa função é, por lei, do atropelador.
     Está bem, imprestável. Vou pegar.
     ...
     Merda! Mil vezes merda.
     Não trouxe por quê? Já está morto?
     ...
     Não era um cachorro?
     ...
    Uma pessoa? Meu Deus.
    Era um toco de madeira podre.
    Que porra fazia um toco de madeira podre no meio de uma estrada, numa noite de chuva, com tanto maluco que tem por aí nos volantes?
     ...
     Estou falando com você. O cachorro comeu sua língua?
     ...
     Vamos seguir, ainda temos muito chão pela frente.
     Mais alguma recomendação?
     Os tocos. Cuidado com eles.



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