Gertrud
Exprêêndidô!
A
linda moça entornava chope com disposição típica dos povos germânicos e derramava
corajosamente molho de pimenta no petisco, o que a deixava com as bochechas
vermelhas e os olhinhos cheios d´água.
Esplêndida.
Depois
me apaixonei pelo sotaque (me apaixono fácil por sotaques em vozes femininas,
seja alemão, libanês, cearense), enquanto Gertrud acompanhava o som que vinha
do pequeno palco e entoava, com delicada alegria:
“Vixto
assim do arrto, mas parrece um ceô no chão... Em Mangueirra a poesia...”
Como
resistir?
Os
dias eram de véspera da Copa do Mundo de 2014, aquela mesma, a fatídica, mas a
minha amada germânica não estava aqui por causa do futebol (não gostava nem um pouco
do esporte, para o qual se dizia sem “tolerrância” nem “disposición”). Cursava
uma espécie de pós-graduação numa universidade pública e fazia pequenos
serviços de tradução, para se sustentar por aqui.
No
primeiro encontro a dois, em minha casa, vivi a primeira pequena decepção:
Gertrud não só não tinha o menor interesse por futebol, como o detestava. O
torneio mundial corria solto e, fanático que sou desde menino pelo esporte
bretão, assistia a todos os jogos pela tevê. Àquela altura do campeonato, ela
já se esforçava para falar sem sotaque, o que demonstrava certa inclinação para
me cativar. Essa disposição já facilitava um pouco as coisas.
Chegou-se
com jeitinho brasileiro, até estranho para uma representante de povo tão duro,
seco e objetivo:
‒ Que
jogo é esse, querido?
‒
México e Camarões!
‒ Vai
ver inteiro?
‒
Pretendo, meu amor.
‒
Jura?! México e Camarões?!
‒ Você
não entende de futebol, Gertrud. Isso é jogão. Senta aqui, vai! Assiste um
pouquinho.
Silêncio…
Minutos depois:
‒
Pronto. Já assisti.
‒ Gostou?
‒ Adorei.
‒ De
que você gostou mais?
‒ Das
pernas desse jogador camaronês.
Pausa.
Depois ela disse:
‒ Vamos
pra Lapa, beber cerveja e dançar?
‒ Alemão
só pensa em beber cerveja e dançar, não é?
‒ Não.
Pensa em namorar também.
‒ Ah,
bom!
‒ Vamos
namorar?
‒ Agora?
‒ Depois
do jogo.
‒ Aí
tem outro jogo.
‒ Ah,
é? Qual?
‒ Espanha
e Holanda.
‒ E
você vai ver também?
‒
Claro!
‒ Mas
você não é nem espanhol nem holandês...
‒ Não
seja boba. Em Copa do Mundo todo jogo é importante.
‒
Então, vamos beber cerveja e dançar, depois de Espanha e Holanda?
‒ Sem
chance. Tem Costa do Marfim e Japão.
‒ Não
acredito!
‒ Não
acredita em quê?
‒ Que
você vai ver Costa do Marfim e Japão.
‒
Claro que eu vou! E vou torcer pros japoneses.
‒‒ Eu nem sabia que japonês
jogava futebol.
‒Não jogavam. Mas se tornaram experts, depois que o Zico andou
como treinador por lá.
‒ Quem é Zico?
‒ Nunca ouviu falar no Zico, o Galinho de Quintino?
‒ Não, de jeito nenhum.
– Meu Deus! Você não entende nada de Brasil nem de futebol
brasileiro!
‒ Mas estou começando a entender de você. Não vai levantar mais desse sofá
hoje, é isso?
‒ Nos
intervalos dos jogos, para fazer xixi, claro!
‒ Não
vai nem comer?
‒ Aquela
salsicha com molho tártaro e mostarda preta deliciosa que uma moça gentil vai
preparar para mim… Isso eu quero!
‒ Não faço
comida para homem preguiçoso, detesto machismo!
‒ Foi
só uma brincadeirinha, fräulein!
Ela
não perdia uma deixa:
‒ Tá. Sairemos
no fim de semana, então? Poderemos ouvir música e dançar samba no Trapiche
Gamboa… Ou ir à roda de samba do Bip Bip, que dizem estar entre as melhores da
cidade…
‒ É a
melhor da cidade, do país e do mundo, Gertrud. Mas domingo é dia dos melhores
jogos desta Copa. Lamento!
A
disputa prosseguia nos gramados, com jogos cada vez mais duros. Dura, também,
era a marcação de Gertrud, cada vez mais acirradas. A Seleção, com o seu ataque
,que comecei a chamar de ataque dos nervos, prosseguia nos gramados, em boa
medida graças a algumas defesas adversárias. Chegamos às semifinais, e a
insistência da moça não saía de campo:
‒ Já
sei. Iremos na terça-feira. Terça é dia tranquilo, o Carioca da Gema fica quase
vazio e perfeito para se beber, dançar e namorar.
‒ Terça-feira?
Justo nesta terça-feira? Pirou de vez> Viajou na salada de batata com
cerveja quente, foi? É dia de grande semifinal!
‒ Ah,
é? E quem vai disputar essa semifinal?
‒ Ora,
Brasil e Alemanha. Nossa seleção de ouro vai triturar os seus patrícios,
menina, sem dó nem piedade!
Aí o
sotaque voltou com tudo:
‒ Verremos!
Verremos entón quem vai vencerrrrrr!
A
terça-feira, dia 8 de julho de 2014, começou esquisita. Nublada e neurótica. A
manhã se arrastou em meio a um pesaroso mormaço, e à tarde o time do Brasil
entrou no estádio do Mineirão, em Belo Horizonte, meio descadeirado. A vértebra
fraturada do Neymar pelo zagueiro colombiano, em partida válida pelas quartas
de final, não só o tirou da partida como aleijou a coluna vertebral de toda a
equipe canarinho. Os conterrâneos da doce Gertrud estavam salgados e dispostos
a estragar a nossa feijoada comemorativa. Schweinsteiger, Khedira, Kroos, Özil
e Müller se mostraram infernais. Miroslav Klose, que chegara na competição aos
16 gols e batera o recorde de Ronaldo, como maior artilheiro das Copas, era o
capeta-maestro, dono do tridente, dos chifres e do rabo maior para surrar nossa
defesa.
Gertrud
me pediu, com antecedência, para levar à minha casa, para ver o jogo, “um
grupinho de três ou quatro” alemães, amigos seus, que como ela também não
tinham família nem conhecidos no Rio de Janeiro.
‒ Somos
os desgarrados, ressaltou ela, dobrando todos os erres.
Não vi
inconveniente em encher a minha sala de adversários e dividir a televisão com
eles. Tudo em nome da solidariedade, da amizade, do espírito esportivo e,
sobretudo, da deliciosa Gertrud.
Uma
hora antes do jogo eles chegaram, trazendo cervejas, vodca, chucrute e salsicha
para tira-gosto, pães, muitos pães, além das inacreditáveis bandeiras, camisas
e bonés nas cores da seleção alemã. Considerei um abuso, é claro, mas fiz vista
grossa, mais uma vez em nome da hospitalidade brasileira.
Antes do
jogo começar eu já estava achando a torcida inimiga (logo, logo tornou-se
inimiga) um pouco ruidosa para o meu gosto, o que me fez silenciar e passar
pelo constrangimento de ser minoria dentro de minha própria casa. Claro que me
arrependi por ter aceitado o pedido de Gertrud, quando me vi acossado por
aquele bando de gringos. Mas pensei: deixa o jogo começar, o Brasil meter logo
duas ou três bolas na caçapa, que eles baixam a crista.
Amarga
ilusão.
O
futebol, como se sabe, tem essa capacidade de fazer o torcedor não enxergar a
realidade e, o que é pior, de fazer uma antidesportista convicta – como era o
caso do meu amor alemão – se transformar em torcedora apaixonada. Foi o que
aconteceu naquela tarde, para mexer com os meus nervos e mudar os nossos destinos.
Ah, os
destinos!
Se
ainda me recordo bem, o jogo começou às cinco da tarde. Dez minutos depois teve
início o sofrimento que parecia não ter fim, com a primeira bola invadindo as
redes do nosso trêmulo e desesperado goleiro. Só no primeiro tempo meteram logo
mais quatro gols, um atrás do outro, aos vinte e dois, aos vinte e três, aos
vinte e cinco e aos vinte e oito minutos do primeiro tempo. No segundo tempo
enfiaram mais dois, antes de pisarem o pé no freio, como se a humilhação não já
estivesse sacramentada.
No
primeiro gol deles, os meus “convidados” vibraram discretamente, demonstrando
algum respeito pelo anfitrião. À medida que o massacre ia se desenhando, eles se
soltavam, urrando expressões que eu desconhecia, mas que provavelmente eram de
palavrões próprios dos estádios alemães, brindando, sorrindo, esmurrando a mesa
e escalando meu sofá com suas patas aroamas Claro que à essa altura eu também
não poderia mais manter qualquer elegância.
Senti
uma profunda vontade de expulsar a vassouradas aquele esquadrão nazista, mas me
contive; o amor acovarda a gente.
Só no
final do jogo fizemos o nosso golzinho de honra.
Honra
de Pirro, claro.
Quando
o juiz apitou pela última vez e a lambança acabou no Estádio do Mineirão, a
confusão começou em minha casa. Os alemães pareciam estar novamente invadindo
territórios alheios em período de guerra, agitando bandeiras, tocando cornetas,
subindo no sofá e gritando da janela.
Penso
que a vodca e a cerveja quentes subiram à cabeça dos bárbaros que começaram a
se sentir em território medieval.
Sempre
ouvi dizer que o amor a tudo supera. Até aquele dia.
Orgulho
próprio e sentimento de torcedor ofendido, entrei em campo. Expulsei a
“alemoada” de minha casa, sem dó nem piedade, muito menos consideração ou
nobreza de sentimentos.
Espírito
esportivo é o cacete!
Saíram
pelas ruas do Rio de Janeiro, comemorando a goleada brilhante como se
estivessem em Berlim. Pedi a Gertrud que ficasse comigo, o desabafo não era
extensivo a ela, mas a ingrata preferiu ser solidária com o bando de invasores.
Sumiu de minha vida batendo portas, para nunca mais voltar.
Fechei
a porta, abaixei a cabeça, peguei vassoura e panos de chão e me lancei ao
trabalho de colocar minha casa em ordem. Desliguei imediatamente a tevê, claro,
pois não havia qualquer interesse naqueles comentários.
Vez em
quando ainda dou uns bordejos pelas imediações da Lapa, entrando e saindo de
casas noturnas, na esperança de bater o olho naquela linda “alemoa”. Agora, que
mais uma Copa do Mundo mexe com os meus sentimentos, volto a me instalar diante
do aparelho, sozinho no mundo e no meu sofá preferido. A seleção brasileira
está entrando em campo novamente, o coração de torcedor volta a bater forte e
uma lembrança amarga, bem amarga, loura de olhos claros e cabelos escuros vem com
ela e se instala em meu peito.
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