segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

 

Caminhos

 1.

     Diante da banca de jornais e revistas, o homem parece petrificado, os olhos grudados na primeira página do jornal que estampa a manchete MARADONA ESTÁ MORTO. Em seguida começa a chorar, a soluçar, a espernear, a arrancar as roupas e a se mutilar, a bater com a cabeça nas pedras da calçada, gritar Meu Deus, Meu Deus, Meu Deus!, o sangue jorrando da testa e escorrendo pelo corpo, manchando a calçada, empoçando no meio-fio, sujando os pés dos passantes. O moço que sai da agência bancária diz Deve ser ataque epilético. É maluquice mesmo, diz o que conserta relógios na esquina. Isso é Covid dezenove, garante a mulher que passa com as compras. Irado, vibra o menino. Leu a manchete sobre o Maradona e ficou assim, o dono da banca explica ao freguês. Ele deve ser argentino, conclui o freguês, comprando o livro de palavras cruzadas e seguindo o seu caminho.

 

2.

     O homem entra no supermercado com a mulher e uma cesta para colocar os produtos. Sai conduzido por dois seguranças, que o levam até o estacionamento, depois de um bate-boca com a funcionária do caixa por motivo alheio à vontade dos dois que estavam apenas até aqui de problemas e loucos para mandar alguém à puta que o pariu. Ali o espancam até a morte, não sem antes arrebentarem boca, dentes, nariz, olhos, cabeça, braços e pernas, tomando o cuidado para não emporcalhar as botas com o sangue, pois precisarão retornar ao interior da loja, se reapresentar ao gerente de segurança e dar continuidade à tarefa de segurar o que for preciso. Os dois que bateram até matar são brancos e o que apanhou até morrer era preto, mas os donos do supermercado dizem que isso não importa, pois o que importa mesmo é que eles não são funcionários, e sim terceirizados, e a partir de agora vão selecionar melhor os colaboradores para evitar incidentes dessa natureza. Estão consternados, constrangidos e solidários com a família enlutada, embora não façam a menor ideia de quem se trata. O homem que cruza o estacionamento do supermercado naquele momento quer saber o que está acontecendo, e uma funcionária do setor de apoio logístico que acompanha a tudo diz Não é da sua conta e nem ouse filmar nada aqui, pois vamos quebrar a sua cara. O menino que ajuda a mãe a empurrar o carrinho de compras até o carro pergunta o que é aquilo. Ela diz que não interessa, não tem importância, entram no carro e pegam o caminho de casa.

3.

     O rapaz trafega em sua moto quando a viatura com três policiais emparelha e ordenam que ele encoste. O rapaz não pode encostar no acostamento que não existe e quando se dá conta já é a viatura atravessada na frente, ele fazendo um esforço enorme para estancar a tempo, pois amassar o carrinho azul e branco com giroflex e sirene ligados é a pior coisa que pode acontecer num de dia tantos acontecimentos ruins. Não dá tempo de pensar nem isto nem aquilo nem nada, pois os fardados já estão de armas em punho e fúria nos olhos, Não parou por quê, seu merda?, Tem o quê aí? Passa tudo pra cá, abre os bolsos, a mochila das costas, o baú da moto, desce agora e ajoelha no asfalto! O rapaz ainda gagueja Tô limpo, senhor, mas o “senhor” sai mastigado e amassado pela coronha do revólver, acompanhando o chute certeiro na boca do estômago. O rapaz não se lembra mais de nada, nunca mais vai lembrar, sequer ficou sabendo que jogaram gasolina e tacaram foto na motoca que ele chamava de “parceira” e nem acabara de pagar. O entregador de gelo que passa por ali todos os dias fica horas diante da cena, tentando entender o que é ferro e borracha de moto, o que são restos humanos. Mas desiste de tentar descobrir e retoma o caminho do trabalho.

 

4.

     O corpo está estendido no chão de cerâmica fria da padaria, no bairro mais chic da grande cidade, entre mesas e cadeiras com gente que toma café da manhã para alimentar o corpo, relaxar o espírito ou curar a ressaca. O dono da banca de jornal em frente à padaria diz que o homem vivia nas ruas do bairro e entrou na padaria não para comprar pão, mas para pedir socorro, tossindo, escarrando e se acabando de vomitar sangue, clamando, gritando por socorro, para que alguém chamasse uma ambulância. Nem ambulância nem socorro nem médicos nem bombeiros nem padre ou pastor, foi chamado apenas um funcionário que cuidava da limpeza no fundo da loja para jogar uma lona preta em cima do corpo, pois é assim que se faz, tão logo o homem parou de gritar e espernear e pedir socorro, caindo morto – feito um passarinho abatido. O rabecão veio horas depois e a família foi localizada, em bairro pequeno da periferia da grande cidade. A mãe disse que o morto quando vivo chamava-se Carlos Eduardo, Carlinhos para ela, que ele vivia nas ruas porque gostava, pois a casa da mãe era modesta, mas estava de portas abertas para recebê-lo, sendo que de vez em quando ele até passava uns dias com ela, que nesses dias ela aproveitava para dar banho e colocar roupas limpas nele, depois de ensopá-lo de desodorante Nívea e de Seiva de Alfazema, pentear os seus cabelos, aparar a barba, dar café com bolo e cuscuz, antes de o filho dar a costumeira meia-volta e dizer “Valeu, minha mãe, mas agora eu vou novamente, me deixe ir, não posso ficar aqui preso, sou passarinho, vou pro mundo, sou do mundo, meu caminho não passa mais por aqui”.

 

5.

     A moça sai de casa à tardinha para comprar pão fresco na esquina, deixando o filho pequeno no colo da avó que assiste televisão com a janela aberta, pois o calor é insuportável. De dentro da padaria a moça escuta disparos que parecem próximos, deixa o troco no caixa e o saco de pães no balcão e corre até a calçada para ver o que acontece. Vê passar correndo o homem suado, trajando camisa de time e segurando uma arma, seguido do policial que também segura uma armas e também corre, suando mais do que o homem porque carrega uma barriga que balança quando ele corre. A moça trata de resgatar compra e dinheiro e correr para casa antes que perseguido e perseguidor retornem atirando. Antes mesmo de empurrar a porta de casa, olha pela janela e vê que a mãe dela está sentada na mesma posição de quando saiu, no sofá, diante da televisão, com o neto no colo, só que agora tem um buraco escuro na testa, de onde escorre sangue também escuro, jorrando pela cabeça e o peito do menino que continua com os olhos vidrados no filme cheio de borboletas, folhas, canções da Sessão da Tarde e um lindo caminho verde no meio de uma floresta.

 

6.

     Por nunca ter visto um coveiro chorando, o repórter do jornal popular que cobria o enterro das meninas se aproximou dele com gravador em punho, antes mesmo de ouvir a família enlutada. O homem disse ao repórter que estava ali em dupla função, como encarregado de sepultar os corpos das primas Rebecca e Emilly, de sete e cinco anos, e também na qualidade de amigo do pai de uma delas, que faria cinco anos daí a três dias e cujo corpinho desceu à cova com a roupa de Moana, princesa da Disney que seria tema de sua primeira festinha de aniversário. Ele não sabe quem é Moana, mas testemunhou o quanto a menina estava linda e chorou feito um bebê, juntamente com os parentes dela e de Rebecca, a priminha de sete anos com quem ela brincava de pique-esconde na porta da casa da família. Também contou ao repórter que além de amigo era vizinho dos pais de Emilly e que chegava do trabalho por volta de oito e meia da noite, depois da jornada no cemitério parava no bar da esquina para tomar uma cachacinha, ninguém é de ferro. Disse que infelizmente vira tudo tudinho, bem do jeito que se deu, com a rua cheia de crianças brincando nas portas e pais chegando do serviço. Tinha uma viatura Blazer da PM parada em frente à rua e, sabe-se lá porque diabos, fizeram uns dez disparos de fuzil. Que quando os policiais foram embora ele atravessou e viu a menina Emilly atingida na cabeça, já sem vida, uma cena que não deseja a ninguém que veja. Depois outra vizinha veio gritando e dizendo que tinham matado a Rebecca também. A revolta era maior, segundo ele, por saber que a família procurou o batalhão ao qual os policiais pertenciam, saindo de lá com o pedido de desculpas e a informação de que havia naquele momento intensa troca de tiros entre a lei e a desordem, que a intenção não era acertar inocente, mas bandidos ferozes, e que essas tragédias infelizmente acontecem porque quem está no fogo é para se queimar, e nunca se sabe ao certo de onde vêm as balas, os sustos, muito menos quem coloca as pedras no caminho.

(Publicado na antologia "Tempus fugit", 25 autores, Bloco Narravito, 2021)


 

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