Quem que eu era?
Todo dia ele faz diferente, que nem na canção do Chico. Mas hoje, não. Ao chegar, perguntando “Lila, você sabe mesmo quem eu sou?”, vi que o Beto voltava a ser, pelo menos naquele dia, o bom e velho Beto de nunca.
E vi que isto não seria bom.
Dia é força de expressão, porque na verdade era à noite que o Beto se transfigurava, inventando personagens que transformavam a nossa cama na galeria mais improvável de tipos humanos.
“Quem que eu era?”
E antes mesmo que parasse para pensar, ele emendava:
“Eu era um marujo grego que chegou aqui em um navio transportando minério. Desembarquei no cais e procurava lugar para tomar uma caipirinha, dizem que a caipirinha daqui é uma delícia, quando conheci você”.
E vinham ritmos, melodias, acordes e compassos desconhecidos. O nosso quarto hospedava uma orquestra mirabolante, onde os instrumentos nem sempre se entendiam; mas aí é que estava a graça.
“Beto, só você mesmo...”
“Não ri, Lila, que desconcentra!”
E ao contrário do verso de Chico, me desmanchava o vestido, me adivinhava os desejos, e ligava o ar-condicionado, no barulho máximo, para a vizinhança não tirar casquinha em nossas construções harmônicas.
Deus etíope, intelectual nórdico, cavaleiro negro, senhor de engenho, mercador de joias, construtor de sonhos, diabos e santos vindos nem sei de onde.
“Quem que eu era hoje?”
Um valente, gay, um gigolô, um negro, um asiático, um vadio, valetes, rufiões, aventureiros.
Depois não dormia pesado, botava o disco para tocar, e boca cadeado, corpo fogueira, saía de fininho, deixando o quarto em chamas, sem açúcar, sem afeto, eu e o Chico, eu e o medo, eu e o terço a que me agarrava, contando os rosários até sua volta.
“Beto, quem você era?”
Até que hoje o novíssimo personagem que era ele mesmo disse “Não dá mais, Lila, não quero mais, não sou nenhum daqueles, nem sequer sou eu mesmo, Lila”, e foi recolhendo os seus pertences, as lembranças dos muitos e tantos, a bota do caçador, o chapéu do pirata, o cinturão do soldado romano, a espada do Robin Hood, as chaves do carcereiro, o nariz do palhaço, o azedume do senhor do mato, o suor, a salmoura, o lenho, as lembranças, o cheiro, tudo, tudo, e disse fui.
Corri à janela e ainda o vi dobrando a esquina, pulando em uma perna só, fazendo diferente, vestindo o Saci que jamais despiu para mim.
(Do livro, "Aquela Música", Editora Myrrha, 2016.)
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