terça-feira, 6 de setembro de 2022

 

Café fraco

 

“O tempo

sempre leva

as nossas coisas preferidas no mundo

e nos esquece aqui

olhando pra vida

sem elas.”

(Aline Bei, O peso do pássaro morto)

 

 

     Do jeito que me cataram embaixo da marquise me despejaram aqui, sem uma palavra sequer, de explicação ou de consolo. O sujeito fantasiado de enfermeiro só abriu a boca para dizer “Espera aí no banco, a moça vai fazer sua ficha”. O que tinha as chaves da ambulância na mão não disse nada, e logo voltou ao volante.

     Quando cantaram pneus de novo, certamente para recolher outros infelizes pelas calçadas, a mocinha se aproximou com a prancheta e a caneta na mão, começando a fazer perguntas. Se eu tinha família, moradia, doença grave, e eu tudo não, não, não.

     Na verdade, era tudo sim, sim, sim. Mas naquele momento era melhor não mexer com essas coisas. Com certeza ela não iria entender.

     Depois me entregou um sabonete com cheiro de nada, e uma toalha já bem usada, porém limpa. E também uma roupa que parecia macacão de mecânico, com um escudo no peito. Perguntei que time era aquele e a moça esboçou um sorriso que pelo menos não era antipático, informando que não era de time nenhum, e sim “o símbolo da instituição”.

     Pensei em perguntar que instituição era aquela e a moça passou o comando para um auxiliar com cara de cachorro buldogue, que foi logo latindo:

     – Bora pro chuveiro, velhote.

     Depois do banho me deram um pente, que usei para ajeitar os fios de cabelos brancos. E apontaram na direção do refeitório.

    – Lanchinho, chefia – o buldogue rugiu, agora um pouco mais simpático.

     Sentei-me no banco de madeira duríssima, diante da mesa também de madeira onde o lanche já estava servido. O cheiro de café e o pão com pouca manteiga me encheram a boca de água e fizeram o pensamento buscar lembranças distantes. De um café mais ralo ainda, porque minha mãe reaproveitava o pó até perder a cor, e de um pãozinho apenas lambuzado; para nossas posses, manteiga era um produto dos mais caros.

     O tempo levou a casa e levou minha mãe, mas me deixou com a mania de fazer e de gostar de café fraco. Em casa, a mulher e os filhos reclamam.

     Sim, sempre tive casa. Até hoje eu tenho. Mas como explicar essa história à mocinha, sem causar confusão em sua cabeça e ainda correr o risco de ser mandado novamente para a calçada sob a marquise?

     O buldogue sustentava o plantão na porta do refeitório, ouvindo música em um celular. Estranhei a demora no retorno da ambulância, perguntei pelos outros.

     – Que outros? – ele quis saber.

     – Os demais internos. Não saíram para recolher?

     – Não vem mais ninguém.

     – E os que já estavam antes, antes de eu chegar?

     – Não tinha mais ninguém. Todos receberam alta. Uns sortudos.

     – Como assim? Sou o único preso?

     – Hóspede.

     – Você, a moça e a cozinheira estão aqui apenas para “cuidar” de mim?

     – Chique, não é? – ele comentou, balançando a cabeça.

     Só neste momento me dei conta de que o ambiente não tinha janelas.

     – Vou acompanhá-lo aos seus aposentos – disse o buldogue, com mesuras exageradas.

     Abaixei a cabeça e o segui pelo corredor, com a sensação de estar a caminho do matadouro. Depois de me mostrar a cama de cimento, a pia mínima e o vaso sanitário, ele disse que o café seria servido às sete da manhã.

     – Pode ser fraco e com leite? – eu perguntei.

     Ele apenas sorriu e fez correr as grades. O quarto também não tinha janelas, se hoje já não me falha a memória.

 

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