quarta-feira, 27 de julho de 2022

 

A vida é troca

     A vida é dura, doutor. Às vezes a gente desconversa, regateia, se finge de morto, pede um desconto. Mas é bem difícil levar alguma vantagem.

     Quem me apresentou o deputado foda foi Fabinho, um velho amigo dos tempos de farda. Caveiramos  juntos, no mesmo batalhão, e pulamos fora, ou fomos pulados, juntos também. Só que fui pra rua sem levar nada nos bolsos ou nas mãos, como diz aquela música, enquadrado no desvio de conduta. Até no xadrez fui parar, como diz a outra. Fabinho ganhou a reserva, até hoje remunerada, pois já era amigo de um deputado mais foda ainda, desses que ficam em Brasília.

     A vida é assim. Cada um carrega a sua cruz. Cada cachorro que lamba as próprias partes. Quem reclama já perdeu.
     Só muito depois eu soube do parentesco entre um deputado e o outro, veja o senhor.  Meu amigo Fabinho é um craque em escolher companhias. A vida é cheia de artimanhas, né não? Quando estamos seguindo com o milho, ela já vem voltando com o fubá, toda serelepe. E taca a broa na cara do abestalhado, do que fica parado na esquina, olhando a banda passar. Fico nada, sigo a banda até onde der.
     Fabinho me levou para falar com o amigo dele lá naquele casarão imponente, onde os deputados todos se escondem. Mas não fomos recebidos ali, e sim num café de rua que fica nos fundos do prédio, desses que servem cafezinho em copo de isopor. Até estranhei, pois foi bem antes da pandemia que colocou um monte de esquisitices em nossas vidas e nos costumes. Estranhei também porque ainda não sacava as presepadas desse pessoal, sempre cheio de manhas e de manias.

     O deputado olhava pros lados o tempo todo, como se estivesse preocupado ou com pressa. Não estendeu a mão quando fomos apresentados. Apenas sorriu um sorrisinho de canto de boca, fez um gesto que parecia bater continência e foi logo querendo saber o que eu precisava.
     "Um advogado", Fabinho se adiantou.
     "Qual é a bronca?", ele quis saber.

     "Homicídio".
     O deputado sorriu:

      "Isso é mole pra nós".
     Virou-se para mim:
     "Trouxe os documentos?"
     "Que documentos?", eu quis saber.
     "Todos. Para a contratação. Fabinho não explicou?”
      "Tenho tudo aqui."

     A vida não faz por menos e assim eu virei assessor do homem. Cargo pomposo da porra. Tenho água gelada, cafezinho, biscoito e até secretária. Salário eu nunca vi. Vai direto pro Fabinho, que repassa pra quem tem que repassar. É um esquema, uma troca, um racha, troço assim, combinação lá deles, normas da casa. O que importa mesmo é que o advogado que eu precisava é amigo do deputado e marcou presença, resolveu a parada com juiz, delegado, o cacete a quatro, e estou livre que nem um passarinho.

     A vida é queda de braço, doutor. Tem que medir com a mente a força do adversário e ir mostrando sua força aos poucos, à medida da necessidade. Faço o trabalho que me mandam fazer e não questiono ordem nem quem ordena. Sabedoria é retesar o muque quando precisa mostrar serviço, mas também deixar o braço arriar na mesa quando o momento exige.

     “Finja-se de doente para ser visitado”, meu pai dizia.

     Assim fui me criando com o homem e com os homens em volta do homem, a tropa de choque, Fabinho sempre à frente. Fazendo só o que tem que ser feito, na hora exata. Eles me dão moral e cobertura. Devolvo com lealdade e silêncio. A vida é troca, doutor.

      O primeiro serviço, digamos assim, de destaque, que caiu em minhas mãos foi o caso da vereadora, que todo mundo está careca de saber. O troço precisava ser feito, por que não pergunte, entrei em cena para agilizar que fosse feito da maneira mais rápida, mais certa e mais limpa. E assim foi. É isso, jogo jogado, vida que segue.

     Depois vieram outras encrencas: empresário (o sócio do deputado que queria bancar o espertinho), fazendeiro (o tal que vendeu a fazenda e depois mudou de planos), membros de associações de moradores metidos em implicâncias e a fazer denúncias, policiais que romperam acordo, compadres nossos que se bandearam pros policiais, essas coisas.

     A vida é encrenqueira, doutor.

     Pode me ligar quando precisar, pois estou aqui e daqui não saio. Só não me faça perguntas cujas respostas não existem ou estão proibidas. Salário pra quê?! Com tanta mordomia, pra que eu quero salário? Prefiro continuar com as gratificações por tarefas cumpridas. Já deu pra sentir que sou bom cumpridor, não foi? O numerário, vamos chamar assim, varia de acordo com a encomenda, a dificuldade ou poder de repercussão que o caso implique, se é que me entende. Entende, né? A vida é, antes de tudo, entendimento.

     O senhor só me diga uma coisa: tenho do que reclamar?

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema". Editora Faria e Silva, 2022)

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