A primeira vez
que era para expulsar o demônio do
corpo.
O cheiro forte das folhas de guiné inundava os corredores.
Os dois enfermeiros pularam da ambulância de caras amarradas. Carregavam
lençóis e cordas, como se fossem caçar um bicho brabo e não socorrer uma
doente. Passaram com indiferença por cima dos meus botões de casca de coco,
bagunçaram toda a arrumação dos times, e pediram à minha irmã que se afastasse
da porta do quarto e fosse chorar na cozinha. Levantei-me para reclamar, não
tinham o direito de falar assim com minha irmã, mas acho que nem me ouviram.
De repente minha mãe parou de urrar e se deixou carregar sem protesto,
mansinha feito um boi castrado, um dos homens com o tufo de algodão amassado
contra o nariz dela, deixando um rastro pela casa de álcool misturado com não
sei o quê. Deitaram minha mãe na maca e a enfiaram pelos fundos da ambulância,
que nem vi enfiarem o caixão com Seu Antônio Sapateiro, morto, lá na gaveta do
cemitério.
A lembrança me entristeceu tanto que nem quis mais continuar a partida.
Dona Carmen deixou o quarto, segurando o galho com as folhas de guiné
agora murchas, sem soltar mais cheiro nenhum. Minha irmã começou a arrumar a
bagunça que nossa mãe fez no quarto, ainda fungando do chororô. Tia Zefa
chegou, trazendo comida numa vasilha de plástico:
-- Trouxe procês. Sei que não comeram nada até agora.
Juba enfiou a cabeça pela porta entreaberta, perguntou se eu queria
bater uma bolinha. Eu disse que não. Perguntou se poderia jogar botão comigo.
Eu disse que não queria mais jogar. Ele abaixou a cabeça e deu meia-volta.
Meu pai continuava na venda do outro lado da rua, sentado no tamborete,
pernas estiradas para frente, pés enfiados na sandália havaiana, copo de
cachaça na mão, assistindo à cena como se não fosse nem com ele.
Foi naquele dia que senti, pela primeira vez, vontade de matar o meu
pai.
(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Faria e Silva Editora 2022)
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