quarta-feira, 20 de julho de 2022

 

A primeira vez

      Eu jogava futebol de botão no piso da sala quando a ambulância freou na porta de casa. Minha mãe estava no quarto com Dona Carmen, a vizinha rezadeira. Soltava uns gemidos como se fosse uma ovelha parindo, a reza de Dona Carmen parecia novena de velhas misturada com cantoria de meio de feira. Não dava para se entender nada, mas a gente sabia

que era para expulsar o demônio do corpo.

     O cheiro forte das folhas de guiné inundava os corredores.

     Os dois enfermeiros pularam da ambulância de caras amarradas. Carregavam lençóis e cordas, como se fossem caçar um bicho brabo e não socorrer uma doente. Passaram com indiferença por cima dos meus botões de casca de coco, bagunçaram toda a arrumação dos times, e pediram à minha irmã que se afastasse da porta do quarto e fosse chorar na cozinha. Levantei-me para reclamar, não tinham o direito de falar assim com minha irmã, mas acho que nem me ouviram.

     De repente minha mãe parou de urrar e se deixou carregar sem protesto, mansinha feito um boi castrado, um dos homens com o tufo de algodão amassado contra o nariz dela, deixando um rastro pela casa de álcool misturado com não sei o quê. Deitaram minha mãe na maca e a enfiaram pelos fundos da ambulância, que nem vi enfiarem o caixão com Seu Antônio Sapateiro, morto, lá na gaveta do cemitério.

     A lembrança me entristeceu tanto que nem quis mais continuar a partida.

     Dona Carmen deixou o quarto, segurando o galho com as folhas de guiné agora murchas, sem soltar mais cheiro nenhum. Minha irmã começou a arrumar a bagunça que nossa mãe fez no quarto, ainda fungando do chororô. Tia Zefa chegou, trazendo comida numa vasilha de plástico:

     -- Trouxe procês. Sei que não comeram nada até agora.

     Juba enfiou a cabeça pela porta entreaberta, perguntou se eu queria bater uma bolinha. Eu disse que não. Perguntou se poderia jogar botão comigo. Eu disse que não queria mais jogar. Ele abaixou a cabeça e deu meia-volta.

     Meu pai continuava na venda do outro lado da rua, sentado no tamborete, pernas estiradas para frente, pés enfiados na sandália havaiana, copo de cachaça na mão, assistindo à cena como se não fosse nem com ele.

     Foi naquele dia que senti, pela primeira vez, vontade de matar o meu pai.

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Faria e Silva Editora 2022)


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