Cada
um sabe de si
– De novo, mulher?!
Eneida. Boa amiga, mas muito intrometida.
Faz que não escuta. Dá início aos seus afazeres, separando apetrechos do dia a dia, lavando recipientes de água, passando flanela com álcool nas cadeiras usadas pelas clientes do salão, quase sempre muito resmunguentas.
As colegas insistem na ladainha que costuma deixá-la aborrecida:
– Larga esse homem, criatura.
– Pra você pegar?
– Deus me defenda – Eneida. Sempre ela.
Deixa que falem. Quem tem boca diz o que quer.
– Não vê que ele vai acabar te matando, Lu? Vai a uma delegacia, antes que aconteça o pior.
As amigas se preocupam, mas nenhuma conhece a fundo o coração de Genival. Por isso o julgam apressadamente. Mas não adianta falar. Até porque o dente não para de doer. Trabalha como pode, secando a lágrima cinza na gola da blusa branca, rádio ligado em cima do gaveteiro, juntamente com esmaltes, acetona, alicates e escovas de cabelo.
“Inferno. Só música triste”.
A vida dedicada ao marido e ao filho. Júnior também é nervoso, feito o pai, mas igualmente carinhoso com ela. No fim de semana leva a namorada para comer o macarrão que Lucinha prepara com capricho, elogiado por todos.
Vê que a menina tem mancha roxa na bochecha e pequeno corte no nariz.
– Que foi isso, minha filha?
Pergunta por perguntar. Sabe do que se trata.
A nora abaixa a cabeça e espalha a mão sobre o rosto. Ela pensa em dizer “Vai à delegacia, antes que aconteça o pior”.
Concentra-se em tirar os pratos da mesa.
Cada um sabe de si.
Deixa a vida seguir a correnteza e vai se equilibrando entre uma braçada e outra. Só não gosta quando se metem em sua vida, o que nem sempre consegue evitar. Genival é assim mesmo, um dia bom e outro mais ou menos. Só fica difícil nos dias diferentes.
“Se não fosse isso...”
Está cuidando da cutícula de uma madame quando o celular toca. A vizinha. Ouvira o baque dentro de casa e foi ver do que se tratava. Bateu na porta, ninguém atendeu. Olhou pela janela semiaberta e viu o corpo de Genival estirado na sala, entre o sofá e a cristaleira, olhos abertos para o telhado. Vivo.
Corre para casa e toma as providências: ambulância, hospital público, emergência depois de muita espera, internação. Genival tivera um derrame, que deixou o corpo parcialmente paralisado. Também não conseguia falar. Só aquele olho duro grudado no teto.
Depois de um tempo está de volta, no mesmo estado. Não teria melhora tão cedo. Talvez fisioterapia possa ajudar. Mas pagar como? Genival vivia de biscate e nunca guardou um tostão. Bebia o pouco que sobrava.
– Já arrumou fisioterapeuta pro teu homem, Lu?
– Ainda não.
– Não vai arrumar?
– Vou pensar.
Cada uma que aparece. Ô, gente danada pra gostar de se meter na vida alheia! Onde já se viu?
Genival em casa, jogado em cima da cama. Nos fins de semana, o filho aparece com a namorada de olho roxo. Carrega o pai para o sofá e, antes de ir embora, o coloca novamente na cama.
– Coitado do meu pai.
Pensa em dizer “Está com pena, leva e cuida”, mas não diz. Sabe que não vai adiantar. Diz apenas, para cortar caminho:
– Seu pai está bem. Ele aguenta o tranco. É guerreiro.
Vez em quando empurra a cadeira de rodas do entrevado até o salão, que felizmente é perto de casa. Ele fica com aquela boca torta e o olho parado nela, parece que acompanha todos os seus movimentos. Dá até nervoso.
Eneida repara, mas não comenta para não ouvir desaforos.
Lucinha está mais solta, conversa com as colegas, fala alto, parece outra pessoa. Especialmente no batom e no esmalte que sequer usava antes. Anda com umas ideias na cabeça, mas ainda não teve coragem de comentar com ninguém: arranjar um namorado. Um homem bem forte, que possa ajudá-la a empurrar a cadeira, mexer no corpo do marido de um lado pro outro, dar apoio na hora de trocá-lo, essas coisas.
Vai ser difícil achar um macho disposto a essa tarefa. Homem é bicho orgulhoso. Mas quem sabe? Imagina-se até se esfregando com o namorado novo no sofá, bem diante de Genival, só para ver como ele reage. Ou morre de vez.
Se ela tem coragem? Claro que sim. É judiação? Uma pinoia.
Cada um sabe de si.
(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema".Faria e Silva Editora, 2022)
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