segunda-feira, 4 de julho de 2022

 

Herança

      A nuvem avermelhada manchava o céu desde o começo da manhã, prometendo que o dia não seria como outro qualquer.

     O pai tomou o café às pressas e deu a ordem:

     – Bote uma roupa e um sapato.

     – Ainda não bebi o meu leite – respondeu o filho.

     – Então, beba. E se apronte.

     O pai seguia na frente, pisando duro.

     O menino ia atrás, feito um canguru, aos pulos, tentando acompanhar os passos apressados das pernas bem mais compridas que as suas.

     O pai descia e subia ladeira, virava curva, dobrava esquina, o menino atrás. O pai colava o dedo indicador no anelar, fazia como se fosse uma rodilha que esfregava na testa, recolhendo o suor e atirando longe. O menino observava o pai, o olho espichado, depois o imitava. Mas não conseguia juntar suor entre os dedos.

     O menino gostava de ver o pai fazer aquele gesto, sobretudo do barulhinho que provocava um dedo estalando no outro.

    O menino estava com sede, mas não queria atrapalhar a empreitada que unia os dois e ele nem sabia qual era. O cheiro forte e azedo de suor, que vinha quando o pai levantava o braço, lhe dava mais sede ainda.

     O pai dobrou mais umas duas esquinas e se preparava para enfrentar uma escadaria às escuras, quando parou e chamou a atenção do filho:

     – Agora você vai ver como é que se faz.

     Estancou diante de uma casa pequena e de paredes sujas.

     Meteu a chave na porta e abriu. A casinha era meio escura, parecendo malcuidada também por dentro.

     O pai acenou, convocando-o, e ele foi atrás. Os dois seguiam a chama da luz fraca que vinha do quarto no final do corredor.

     A porta do quarto estava semicerrada. O pai acabou de abrir, empurrando com o joelho, e o menino então viu o homem estirado no chão, um braço preso ao armário de aço por algemas.        

     O homem parecia um bicho. Tinha um olho inchado, machucados na boca, e estava todo mijado. Havia feridas na cabeça, visíveis entre os fiapos de cabelos brancos. Abriu a boca seca, tentando respirar por ela, e o menino notou a inexistência de dentes.

     – Quem é ele? – perguntou o filho, de olhos arregalados.

     – Não se assuste – o pai recomendou.

     O menino ensaiou um choro e gemeu baixinho:

     – Estou com pena dele, pai.

     O pai grunhiu, de um jeito só seu:

     – Guarde os sentimentos e economize tempo, meu filho, que essa peste não merece nenhuma preocupação.

     O menino estava trêmulo. As pernas finas parecendo varas de bambu em meio à ventania.

     – Ele vai morrer, pai? – perguntou.

     – Vaso ruim não quebra fácil – foi a resposta rude.

     O homem encarava o menino, espichando o olho inchado, pedindo ajuda. O menino o evitava, mas quando o encarou por poucos segundos achou que ele chorava.

     – Solta ele, pai, pelo amor de Deus – implorou.

     – Não me peça uma coisa dessas, pois eu trouxe você aqui exatamente para lhe mostrar como é que se faz.

     O menino gritou que não queria saber de nada daquilo e foi saindo do quarto, aos soluços. O pai o seguiu, cercando-o no corredor, sacudindo o menino pelos ombros e falando grosso:

     – Mas vai ter que saber. Vai aprender comigo, como aprendi com o meu pai. Daqui a pouco eu morro e você vai ter que cuidar dessa desgraça aí, que dificilmente morrerá antes.

     – O menino chorava de nervoso e de medo:

     – Por que eu?

     – Porque é a sua herança.

     Quando deixaram a casa, o menino esfregou os olhos na manga da camisa e olhou para o céu.

     A nuvem parecia mais vermelha.

     – Vamos embora. Parece que vai chover sangue – disse o pai.

     E não disse mais nada.

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Editora Faria e Silva, 2022)



 

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