segunda-feira, 21 de outubro de 2024

 

Irmandade

      Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.

     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.

     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.

     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.

     Cirrose — disse ele.

     Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.

     Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.

     O doutor era um sujeito engraçado.

     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.

     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.

     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.

     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que ficava muito pior.

(Do livro "A viagem e outros contos", de Luís Pimentel. Editora Patuá, 2024)    

 

segunda-feira, 14 de outubro de 2024

 

Mãos dadas

      Eu tinha verdadeira adoração por ela. Um dia perguntou se eu não sentia vergonha pelo fato de ela ser puta. Eu disse você é feliz assim e isto me faz feliz, ou uma besteira dessas. Na verdade, não me incomodava nem um pouco, estava mesmo era me lixando pros seus draminhas. Ela fingiu acreditar e abriu o quebra-vento, depois balançou o cabelo prum lado e pro outro, como gostava de fazer quando saíamos de carro.

– Mas você tem vergonha de sair de mãos dadas comigo – ela disse.

– Claro que não – respondi.

– Então por que não passeia de mãos dadas comigo por aí?

     Comcei a ficar puto com aquele papo, sempre fico puto com esses papos, mas procurei não demonstrar:

– Sabe o que é? Acho a maior besteira andar por aí de mãos dadas ou de

braços dados. Não ando assim com ninguém, acho que nem sei andar desse jeito, não acerto o passo.

– Nem com a sua mulher você andava?

– Não.

     Eu disse que tinha verdadeira adoração por ela, mas que detestava aquela conversa. Sempre gostei muito de putas, mas detesto conversa de putas. Ou bebem demais e ficam escrachadas, abrindo as pernas fora de hora e dizendo palavrão, ou ficam com essa mania de mulherzinha, querendo andar de mãos dadas e de braços dados, fazer compras com a gente no shopping.

     Ela pegou uma escova enorme na bolsa e começou a ajeitar os cabelos, desarrumados pelo vento. Tinha cabelos bonitos, putas geralmente têm cabelos bonitos porque cuidam bem deles. Depois pegou o batom e começou a avermelhar os lábios.

– E à missa? Você iria à missa comigo? – perguntou.

– Claro que iria.

– Mentiroso.

– Não me chama de mentiroso. Vou à missa com você qualquer dia desses,

você pode até apostar.

– Qualquer dia desses, não. Vamos hoje – e tentou me beijar daquele jeito

que parecia beijo de cachorro, a língua para cima e para baixo, uma luva úmida no meu pescoço.

– Para.

– Tá vendo? Além de vergonha, tem nojo de mim.

     Eu disse que não tinha nojo coisa nenhuma. Ela insistiu que eu tinha nojo dela, por isso não gostava de beijo na boca nem de lambida no pescoço.

– Já disse que não tenho nojo de você, porra! – rosnei, batendo com a mão

espalmada no painel do carro.

     Ela se assustou, me olhou até com medo, mas mesmo assim voltou ao lengalenga. Puta é foda mesmo:

– Então passeia de mãos dadas, me leva à missa, ao cinema, ao restaurante,

me dá um beijo de novela.

– Não vejo novela.

– Então me dá um beijo de cinema.

Eu disse não enche o saco e ela berrou não fala assim comigo, seu cavalo.

Perdi de vez paciência, meti o cotovelo nos peitos dela e gritei cala a boca agora, sua puta escrota. Ela disse cala a boca é o cacete e blasfemou que puta era minha mãe. Porra, logo minha mãe, a vaca não sabia mesmo com quem estava se metendo. Se tem uma coisa que não admito é que falem de minha mãe, desde pequeno, quando quebrei a cara de um colega de escola. O merdinha falou que minha mãe ficava na zona enquanto eu dormia.

     Segurei o volante do carro com uma mão e com a outra dei uma bofetada certeira. Ela chorou, xingou e gritou olha para a frente, seu débil mental. E quando olhei para a frente já estava enfiando o carro em cima do poste.

     Não foi por querer que direcionei para o poste o lado do carona. Não foi por cafajestada que salvei a minha pele e acabei com a vida da única mulher que talvez tenha amado na vida. Eu tinha, mesmo, verdadeira adoração por ela. Juro que se ainda desse tempo eu iria de mãos dadas com ela até para o inferno.

(Do livro "A viagem e outros contos", Editora Patuá, 2024)

sexta-feira, 11 de outubro de 2024

 

No dia em que vim me embora

      A vida de um homem se borda no amor ou no desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

Você se apresse, que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição.

Quase pronto, pai. Posso saber para onde vamos?

Já disse. Para o tal do seminário.

E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?

Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Ideia lá dela.

Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as frases, sem muito cuidado com as palavras.

      Entendi, mas fiz que não. Com o pé, ensaiei um carinho no cachorro, que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.

    – E desmonta essa cara de tristeza. Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo, menino.

     – Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.

     – Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.

– Grande coisa!

– Você está sendo mal-agradecido.

– Eu não queria, pai.

– Sua mãe decidiu.

– Eu sei.

– Tá decidido.

– Eu sei.

– É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.

– Vou poder levar o meu cachorro?

– Não. Eles não aceitam bicho lá.

    O sol, sempre intenso naquele pedaço de mundo, parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

     Subimos na carroceria do caminhão que levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “Se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.

     Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

– Vai ser bom para você – ele disse.

– Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.

– Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.

Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.

– Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as férias em casa.

– Não venho – reagi.

– Não vem?

    Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe.

     Continuei impiedoso:

– Não venho.

– Eu busco você.

– Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa.

No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a malcriação.

     A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:

– Pensando na morte da bezerra?

– Em meu cachorro.

– Sua mãe vai cuidar bem dele.

– Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada.

– Eu cuido dele.

 O senhor não tem tempo.

– Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?

– Não tem. É cachorro mesmo.

– Vou cuidar muito bem de Cachorro – repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista. Que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.

     Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos parados na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas.

     Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários.

     Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro-me de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.

sábado, 5 de outubro de 2024

Cabelos molhados

      Ananias deu banho nos meninos, ajudou a vestirem a roupa, penteou seus cabelos e colocou um ao lado do outro na mesa, diante do feijão, arroz, carne e abóbora que ele mesmo preparou. Depois de andar um quilômetro com os filhos e colocá-los na condução que os levariam até a escola, no vilarejo, se preparava para pegar o caminho da roça, onde ajeitaria uma cerca caída. A freada do jipe com placa do município mudou os seus planos.

     Polícia, Corpo de Bombeiros, Defesa Civil, o padre, a responsável pela Delegacia da Mulher e até um repórter do jornal da capital chegaram em caravana. Falavam em nome da ordem, da justiça, do povo e até de Deus, atendendo a denúncias anônimas dando conta de que Almerinda estava morta, vítima de maus-tratos. Foram logo informando que não traziam mandado de busca nem era preciso. Ananias não exigiu nada nem parecia saber do que se tratava.

     Gente de Cristo, onde já se viu?! choramingava o suspeito, olhos em brasa e pânico, tremendo diante dos homens e da delegada, chorando no ombro do padre.

     Era um homem temente, sempre fora. Tinha um São Jorge Guerreiro na sala e o Sagrado Coração na parede do quarto, na cabeceira da cama.

     As lágrimas e o desespero de Ananias não impediram os invasores de continuar a investigação. “É melhor o senhor confessar de uma vez por todas”, dizia o policial. “Vamos derrubar paredes até encontrar o corpo”, confabulavam bombeiros e agentes da defesa. A delegada chamou o acusado num canto:

     Onde foi parar a coitada, Seu Ananias? Sabemos que você batia nela.

     Almerinda desapareceu, doutora.

     Ninguém desaparece, homem. E está desaparecida desde quando?

     Desde a semana passada. Sumiu numa noite de lua cheia. Almerinda andava muito esquisita, Deus me livre.

     Deixe de crendice à toa e mostre onde enterrou a infeliz. É melhor para você, criatura.

     O tal do repórter parecia um carro de boi no atoleiro:

     O senhor matou? Matou ou não matou? O senhor matou?

     Nenhuma panela mais nos armários. Roupas arrancadas do baú. Móveis e a cama de pernas para o ar. Os homens quebravam tudo, em algum lugar o corpo estaria. Viram o poço no fundo do quintal, correram até lá. “Vai ver, está ali, afogada”. Ananias enxugava as lágrimas nos pelos da mão e futucava os dentes com um palito de fósforo.

     Na água que bebo? Que uso para dar de beber às crianças?

    O padre tentou negociar:

     Confesse, filho, depois se apegue com o Salvador. Ele dará o perdão e mostrará o bom caminho.

     Ananias gemeu. Mais ainda quando os homens arrebentaram o depósito de mantimentos, caroço de milho correndo por toda a despensa. “Em algum lugar ele escondeu o corpo”, dizia o bombeirinho, o mais franzino de todos.

     O padre se roía em remorsos:

     E se o pobre não tiver culpa de nada? — perguntou à delegada.

     Como? Judiava dela. Arrastava a mulher pelos cabelos, ela tinha cabelos lindos e longos, submetia a instintos animais, dizem até que um dia marcou com o instrumento de ferrar o gado a bunda da infeliz.

     O pároco pigarreou, envergonhado. Bombeiro e policial voltaram do tanque, trazendo uma cabaça em forma de cuia.

     Só achamos isto.

     Pois é com isto que encho a lata d´água, o cocho dos porcos, o vasilhame das galinhas. Antes quem fazia tudo era ela — e caiu mais uma vez em pranto.

     As ordens se atropelavam, quase sempre aos gritos:

     Verifiquem o chiqueiro! Cavem a terra no curral! Sacudam os galhos das árvores!

     Gente da lei sabe que não existe limite para as astúcias assassinas. Ananias apenas repetia não saber de nada, enquanto implorava baixinho: “Volta, Almerinda, me tira deste pesadelo”.

     Já estava ficando noitinha quando as visitas indesejáveis ligaram o jipe, prometendo voltar dia seguinte bem cedo, para retomar as buscas e as investigações. Ananias ficou sentado no banquinho ao lado da porta, coçando os olhos ardidos de tanto choro, criando coragem para pôr ordem na mente e começar a trabalheira de botar no lugar tudo o que aquela gente sem modos esparramou.

     Mas antes iria até o quintal, levantar a pedra do fundo do poço e fazer submergir mais uma vez o corpo de Almerinda, o vestido de chita se desfazendo de tanto limo grudado. Oferecer a sopa que a morta recusaria, pentear seus lindos e longos cabelos molhados e dessa vez pedir, por tudo o que é mais sagrado, que ela não conte o que sabe para aquele povo do município. Antes disso, não ia conseguir dormir.

 (Do livro A viagem e outros contos, Editora Patuá, 2024)