sexta-feira, 30 de dezembro de 2016


Traste

      –Vai lá na sala se despedir do traste do teu pai – disse minha mãe, me puxando pela orelha, torcendo a cartilagem do meu lóbulo.

     – Quando novinho eu nem sabia direito o significado da palavra; mas tinha certeza de que o meu pai não era traste, não. Minha mãe implicou muito com ele, a vida inteira. Mesmo naquele momento, ele morto mortinho, a implicância continuava, como se vê.

     Parado diante do corpo duro e estirado do meu pai, os olhos dele parecendo duas pedras de vidro, vidrados no teto, me pergunto se ele era o demônio todo que a mãe desenhava. Será? Só por que tomava cachaça, não parava em emprego nenhum, e vez em quando tinha a mania de querer bater na gente?

     Não batia, só ameaçava, quando estava com a cabeça quente e cheia de álcool. Meu pai nem sempre cumpria o que prometia, o que deixava minha mãe mais aborrecida, cobrando o conserto do fogão, a troca das telhas quebradas, o colchão novo, cadê?, cadê?

     Não havia dinheiro, não sobrava dinheiro para nada.

     “Coitado”, eu pensava.

     – Traste!  – ela dizia.

     Minha mãe não bebia cachaça, mas tinha outro vício: gostava de ouvir conversa de pai-de-santo, fazer despachos – que ela chamava de “trabalhos” – e de cantar umas cantorias estranhas, que dizia ser “pontos e cânticos”.

     Meu pai detestava essa prática, porque ele se dizia muito católico – mesmo sem jamais ter passado sequer na porta de uma igreja – e interessado nos assuntos do céu e de Deus. Quando a mãe reclamava que o pai gastava o dinheiro da gente no balcão do bar, ele retrucava:

    – Pior é gastar fazendo feitiço.

     Agora o pai está aqui, seu corpo estiradinho em minha frente, o povo rezando as rezas que pra mim são cantiga, “Com minha mãe estarei, na santa glória um dia...”, “Uma incelença, entrou no paraíso... Adeus, irmão, adeus, até o dia do juízo...”, nem de longe parecendo aquele corpo cheio de rugas e de cabelos do meu pai quando de pé no balcão da venda, onde cuspia no chão e derramava um pouco de pinga para o santo, enquanto alisava minha cabeça e perguntava se eu ia querer ganhar bananada ou bolacha fofa.

     – Os dois – eu dizia, porque o pai estava feliz e porque era domingo.

     Ele sorria e autorizava a compra. Eu quebrava a bolacha fofa no meio e envolvia a bananada com as duas bandas, fazendo um sanduíche.

     Meu pai então passava a mão peluda pela minha cabeça, de um lado pro outro, e dizia duas, três vezes pro dono da venda, com a voz a cada vez mais pastosa:

     – Esse aqui é meu filho. Você conhece ele?

     Repetia a informação e a pergunta até o moço deixar ele falando sozinho no balcão e sumir pelo interior da venda, procurando o que fazer, só para escapar da falação do meu pai.

     Aí eu me lembrava do que fui fazer ali e dizia que a mãe estava chamando para almoçar. Ele perguntava se a mãe já retornara da casa do pai-de-santo. Eu dizia que sim, e começava a rezar em silêncio, pedindo a Deus que acalmasse o coração dos dois, não permitisse briga hoje, pelo menos hoje, um dia de domingo.

     Ficava triste quando minha mãe chamava o meu pai de traste, porque eu nem sabia direito o que essa palavra queria dizer, mas tinha certeza de que traste ele não era. Nunca tive coragem de reagir, apesar de já ter sentido muita vontade, porque tinha medo que a minha mãe me batesse e também porque ela falava essas coisas, geralmente, quando o pai não estava em casa. E se ele não ouvia, que mal havia?

     Mas agora, que está estiradinho e mais morto do que nunca, que com certeza não vai reagir para começar outra briga feia com a mãe, eu acho que posso falar baixinho no seu ouvido:

     – Olha, pai, fica calmo e sereno aí. Eu nunca achei que você fosse um traste. Nunca mesmo, pai. E preciso te dizer outra coisa: eu também não gosto de pai-de-santo.
 

    

quarta-feira, 21 de dezembro de 2016


No dia em que vim embora


 
     A vida de um homem se borda no amor ou no desamor. No afeto ou na indiferença. Pode ser a soma de todas as sobras, de tudo aquilo que não teve, da indelicadeza de uma mãe, o bigode de um pai, a ausência de um cachorro. Também se desenha e se borda em um diálogo assim:

— Você se apresse, que não tenho todo o tempo do mundo para ficar à sua disposição.

— Quase pronto, pai. Mas posso saber para onde vamos?

— Já disse. Para o tal do seminário.

— E por que o senhor resolveu que tenho que ir para um seminário?

— Não resolvi nada. É coisa de sua mãe. Ideia lá dela.

Meu pai falava tudo assim, de um jeito próprio, parecia escarrar e cuspir as frases, sem muito cuidado com as palavras.

      Entendi, mas fiz que não. Com o pé, fiz um carinho no cachorro, que parecia estar tão triste quanto eu. Meu pai percebeu.

— E desmonta essa cara de tristeza. Parece um bezerro a caminho da castração. Não é o fim do mundo, menino.

— Porque não é o senhor que está deixando sua casa para ir não sei para onde.

— Você não vai para não sei onde. Vai para um seminário, estudar para se tornar um homem sabido e temente a Deus.

— Grande coisa!

— Você está sendo mal-agradecido.

— Eu não queria, pai.

— Sua mãe decidiu.

— Eu sei.

— Tá decidido.

— Eu sei.

— É assim que a banda toca. São assim as coisas neste mundo.

— Vou poder levar o meu cachorro?

— Não. Eles não aceitam bicho lá.

    O sol sempre intenso naquele pedaço de mundo parecia mais intenso ainda no dia da minha partida.

     Subimos na carroceria do caminhão que nos levaria até a rodoviária da cidade mais próxima, onde tomaríamos o ônibus. Minha mãe me entregou a sacola de couro com o que chamou de “minhas coisas”: um sapato surrado, alpercatas, camisas mal engomadas, duas ou três calças curtas. O cachorro não veio. Minha mãe me deu um beijo na testa e disse secamente “se cuide”. Meu pai não disse nada. Nem eu.

     Era muito cedo ainda e fazia frio. Quando nos acomodamos nos bancos de madeira da carroceria, meu pai esfregou a mão em minha perna, para me esquentar. Mordia o lábio inferior e apertava com os dentes os fios mais compridos do bigode.

— Vai ser bom para você — ele disse.

— Fingi que não ouvi e tentei me distrair contando as árvores que passavam correndo na estrada, na direção contrária à do caminhão.

— Você vai aprender a ler, conhecer todas as histórias bonitas que existem nos livros, e vai ter comida nas horas certas.

Voltei minha atenção para a conversa dos outros homens sentados nos bancos, os companheiros de viagem. Eles fumavam, sorriam mostrando os dentes estragados e falavam sem parar de gado, de porco, de cabras, cercas e falta de água nas cacimbas.

— Vai ter roupas sempre limpas, filho. E no fim do ano vem passar as

férias em casa.

—Não venho — reagi.

— Não vem?

    Meu pai apertava mais os lábios, coçava a barba e tinha um olho que parecia tremer sem parar. Devia estar triste, nervoso, com saudades de minha mãe.

     Continuei impiedoso:

— Não venho.

— Eu busco você.

— Mas não me traz de volta. Não piso nunca mais os pés em sua casa.

No ônibus que nos levava para o seminário, ele tratou de voltar ao assunto. Eu repeti toda a malcriação.

     A paisagem era mais verde do que na estrada anterior. Uns pingos de chuva dançavam no vidro da janela. Eu via o céu, as árvores passando, e o perfil do meu pai refletindo no vidro da janela do ônibus. Ele estava triste, mas tentou novamente ser gentil:

— Pensando na morte da bezerra?

— Em meu cachorro.

— Sua mãe vai cuidar bem dele.

— Minha mãe não cuida bem de ninguém nem de nada neste mundo.

— Eu cuido dele.

— O senhor não tem tempo.

— Vou cuidar muito bem do seu cachorrinho, você vai ver. Como é o nome dele?

— Não tem. É cachorro mesmo.

— Vou cuidar muito bem de Cachorro — repetia meu pai, enquanto me entregava com a sacola de couro à recepcionista. Que me levou até o quarto onde já estavam uns quinze meninos, que me mostrou o banheiro coletivo e a toalha de banho, que tentava sorrir para mim e que me trouxe de volta até a recepção do seminário quando eu disse, aos prantos, que estava arrependido por não ter aceitado o abraço nem o beijo de despedida que o meu pai deixou parado no ar.

     Daí em diante, foi contar os dias até a chegada das primeiras férias, para ficar parado horas no portão, esperando a chegada do meu pai, os olhos parados na direção da estrada e as calças cada vez mais curtas.

     Mas quem veio foi minha mãe e disse que eu iria com ela para o período de férias em casa, que podia desmanchar a pose de enfezado e parar de esperar pelo meu pai porque ele não viria. Meu pai morreu pouco tempo depois de me deixar no seminário. Não avisaram para evitar sofrimentos desnecessários.

     Cumpri orgulhosamente minha promessa de não voltar nunca mais. Hoje, que já abandonei o seminário e me perdi no mundo, lembro de pouquíssimas coisas daqueles dias: os dentes estragados dos homens na carroceria do caminhão, o olho comprido e acho que molhado do meu pai pesando em minha nuca, enquanto eu acompanhava a recepcionista pelo corredor, e a saudade imensa que eu sentia do meu cachorro.
 
Do livro "Contos da vida absurda" (Editora Casarão do Verbo, 2014).
 

 

 

 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2016


 
Bina
     Meu nome é Balbina – se é que Balbina é nome, sei lá de onde meu pai tirou isto – mas o senhor pode me chamar de Bina, como todo mundo aqui: Bina pra lá, Bina pra cá.
     Os mais educados passam boa-tarde, Bina, às vezes até Dona Bina. Os moleques assobiam, gritam Bina Doida, levantam minha saia e bagunçam meu cabelo. Uns vêm com o diabo, outros Deus que manda – como a vizinha Dona Lola, que traz a marmita quentinha mesmo sem eu pedir.
     Eu digo Deus lhe pague, Dona Lola, ela responde Amém e a vida segue, aí olho pro céu e vejo anjos batendo palmas. Vou querer mais o quê?
     Bina não tem um filho sequer que a ampare? Não. Nem sobrinhos, primos, irmãos, nada, nem homem? Deus me livre. Não tenho nem quero ter. E até que já tive, mas não prestou. Filho, até que já fiz, mas não vingou. Ô, leva eu, minha saudade, que eu também quero ir, minha saudade, quando chego na ladeira... deixa estar.
          Deixa estar, que nasci nua e estou vestida. Mais ou menos vestida. Nem sempre fui um traste, nem sempre vivi de esmolas. Areei muita panela de alumínio em casa de rico, lavei lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, sequei coceira, frieira e catarro de menino amarelo.
     Vou me queixa? Pra quê?
     Medo da morte? Por quê?
     Só tenho medo da vergonha, da humilhação, dos desaforos, as tripas soltando o peso, o corpo largando os pedaços, o vento carregando os sonhos. Bina é doida? Vocês que pensam.
     Tentei bolsa-escola, mas não sei ler nem escrever. Também fui no bolsa-família, mas não tinha família para apresentar. Deixa. Vim ao mundo sozinha, sozinha vou partir já, já. Nem fome, nem sede, nem frio me metem medo. Só me assusta a noite. Melhor dizendo, o vento da noite, o barulho que o vento da noite faz.
     Zuuuuummmm é o vento da noite. Nas telhas. Nos ossos. Zuuuuummmm chamando Biiiiinaaa! Cadê tu, menina?
     Era o meu pai.
     Vamos comigo, Bina, prender o gado. Vamos soltar o gado. Ordenhar as vacas. Faz um carinho na teta da vaca, filha, faz, na testa do cabritinho que ficou órfão. A mãe do cabrito morreu. A minha mãe cozinha maxixe nas panelas de barro, no fogão à lenha, meu pai secou até virar um graveto.
     Biiiiinaaa!
     Só na escola, onde entrei, aprendi que eu era Balbina – se é que Balbina é nome. Entrei, mas não fiquei. Saí pela mesma porta. Conversa difícil, palavreado, meu pai morrendo e eu aqui?
     Mãe também se foi. Foi-se o cabrito que a cabra deixou. Foi o marido, o filho, a cerca do roçado, a estrada era uma pedra atrás da outra, vista da carroceria do caminhão.
     Ficou melhor aqui. Vocês que pensam.
     Tome bronca, humilhações. Bina faz isto, faz aquilo.
     Biiiiinaaa!
     Areia panelas, lava lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, seca coceira, frieira e catarro de menino amarelo.
     Tinha vestido florido? Não tinha.
     Tinha passeio no domingo? Não tinha.
     Tinha direito de dormir e sonhar?
     – Biiiiinaaa! Acorda, Bina!
     Não tinha um documento sequer, mas agora tenho todos. Fui tirando, um a um, esse para ser atendida, aquele para os exames, o outro para facilitar a internação. Fui facilitando tudo. Quer identidade? Pois tome. Deite assim, assim ou assado. Deito. Enfia câmara, borracha, ferros, em cima, embaixo, nas veias, nos buracos, na alma, eu ali, Bina, faça força, enquanto me carregam pela mão, tubos arrastando, escadas, luzes, pavores, e eles todos pensando que eu não sei que já vou morrer.
     Que pensem.
 
 

segunda-feira, 28 de novembro de 2016


A viagem



     O rapaz entrou em casa como quem entra no bar. Sentou em uma cadeira e estirou as pernas sobre o tamborete. Pegou a garrafa de cachaça no móvel ao lado da mesa e um copo na bandeja cheia de copos que ficava ao lado da garrafa. Serviu-se e tomou duas doses, uma seguida da outra, depois acendeu um cigarro. A sala estava na penumbra, iluminada apenas pela luz azulada da televisão que o pai assistia. O clarão do palito de fósforo iluminou o rosto do rapaz e o pai observou que ele tinha a barba por fazer. O pai viu que os sapatos do rapaz estavam sujos, largando tufos de terra sobre o tamborete, mas não reclamou. Apenas perguntou você vai mesmo e ele disse vou.

     O pai quis saber se ele estava aborrecido com alguma coisa e ele disse que não. O pai então perguntou por que resolvera partir assim, tão de repente? Ele respondeu que era para não perder a oportunidade, o caminhão alugado pela empresa sairia de manhã bem cedo, levando todos os candidatos ao emprego. Queria aproveitar para não ser obrigado a ir depois, sozinho, ainda tendo que pagar a passagem.

     Que tipo de trabalho é esse, meu filho?, o pai quis saber.

     O rapaz não respondeu e amarrou a cara. E se serviu de mais uma dose.

     O pai insistiu, me diga ao menos onde é. Respondeu que era na capital. A contragosto. O pai perguntou ao filho se já tinha separado todos os documentos, sem esquecer identidade e carteira profissional, e ouviu um muxoxo como resposta: não sou abestalhado, meu pai. O pai disse eu sei, filho, é só uma preocupação.

     Está levando algum dinheiro?

     Estou. O pouco que tenho.

     Precisa de uma ajuda?

     De jeito nenhum. Guarde suas economias, para as necessidades.

     O pai perguntou se o filho sabia quanto ia ganhar e ele respondeu que não. Sabia ao menos se o ganho seria suficiente para as despesas? Ele respondeu que sim. Derramou mais uma dose de cachaça no copo e o pai disse pare de beber, vá se alimentar. Vá fazer essa barba e tomar um banho. Depois descansar, de manhã cedo precisa estar preparado para encarar a estrada.

     Não sou eu quem vai dirigindo, reagiu o rapaz.

     Mesmo assim, disse o pai.

     O rapaz perguntou pela mãe e o pai respondeu que estava no quarto, onde mais estaria? Melhora nenhuma?, perguntou. Melhora nenhuma, foi a resposta. O pai disse vá se despedir dela, já que você vai sair bem cedo, e o rapaz disse que preferia não se despedir. Disse não quero olhar para a mãe daquele jeito que ela está. O pai disse você é quem sabe e reparou que o filho tinha os olhos molhados. O pai se levantou para desligar a televisão e o filho observou que ele também tinha os olhos molhados.

     O pai disse vou dormir e já estava até mesmo de pijama. O rapaz desejou um bom sono. Pode aguardar que mandarei notícias. E não se preocupe com nada. O pai disse me despeço de você amanhã. O rapaz respondeu que ia madrugar.

     Não tinha importância. O pai estaria acordado.

     Bem cedo estava em pé diante do fogão, preparando café e esquentando na chapa umas bolachas que tirava do saco de papel. O rapaz acabava de colocar as roupas na sacola e penteava o cabelo diante do espelho do banheiro. O pai apontou o corte abaixo do queixo e o filho disse que fora gilete cega. O pai ofereceu uma loção pós-barba. Gosto mais de passar álcool mesmo, disse o rapaz, mas dessa vez sem qualquer impaciência.

     Quer ovos quentes, para forrar bem o estômago?, o pai quis saber. O rapaz disse que não era preciso. Aí o pai lembrou que talvez ele não conseguisse comer nada tão cedo e o rapaz disse deixe, pai, que eu me ajeito. O deixe, pai soou de maneira carinhosa. E foi com mais carinho ainda que o pai acabou de esquentar as bolachas.

       O pai ficou olhando para o filho, enquanto ele tomava café, acendia o cigarro, entrava e saía do banheiro, conferia as peças de roupas na sacola, olhava para o quarto da mãe, parecia entrar no quarto, se afastava, bebia água do filtro que estava no canto, ao lado do fogão, olhava para o quintal e depois para as paredes, assoviava para o passarinho, coçava a cabeça do cachorro.

     O pai ficou olhando para o filho enquanto ele fechava o zíper da sacola, dizia até breve, pai, fique com deus e se afastava.

     E assim o homem desconhecido que bateu na porta dois dias depois encontrou o pai. Era um fim de tarde e ele tomava uma cachaça no copo que o filho gostava de usar, olhando ora para a porta por onde o filho saiu e ora para o quarto onde o filho não entrou para se despedir da mãe.

     O moço perguntou o senhor é o pai dele? Falou calmamente do acidente com o caminhão, como foi e como não foi, quem teve culpa e quem não teve, que o motorista da carreta é que descia a ladeira dirigindo desembestado, e foi falando tanta coisa que o pai não conseguia mais ouvir nem entender.

     Por fim o moço disse como o pai deveria proceder para retirar o corpo, as roupas e os documentos do filho do instituto médico legal de não sei onde. Que outro caminhão da empresa estava à disposição para trazer todos os corpos de volta, mas que o pai tinha que ir até lá tal dia e tal hora, para aproveitar o carreto.

     E do jeito que entrou, o moço saiu. Falando sem parar, agora já dizendo coisas como meus sentimentos, isso acontece, é da vida, descansou, deus chamou, era um rapaz tão jovem, tão forte, tão bom e outras falas que o pai já não conseguia ouvir, pois só queria que ele fosse logo embora, para entrar no quarto escuro e abafado da doente e dar de uma vez por todas a notícia que estava para dar há quarenta e oito horas: o nosso filho viajou.

 Concurso Nacional de Contos Luiz Vilela 2004 (1º lugar)), da Fundação Cultural de Ituiutaba (MG). Do livro "Contos da vida absurda" (Casarão do verbo, 2014)
 

 

quinta-feira, 10 de novembro de 2016


Danadinha

     Quando minha mãe diz “Boa noite, filhinha, durma com Deus”, o sangue muda de temperatura em minhas veias. Toda noite é assim. Quando ela apaga a luz, joga o beijinho com “Eu te amo” e fecha a porta do quarto, a adrenalina dispara a partir do dedão do pé, fazendo acrobacias nas zonas erógenas e se espalhando pelo corpo.

     Toda noite é assim.

     Espero alguns minutos, até minha mãe entrar e sair do banheiro, pegar a jarra de água na cozinha e fechar a porta dos seus aposentos. Sei que daí a pouco estará dormindo, que o meu pai já dorme há mais de uma hora, que nesse instante a casa passa a ser só minha, do meu computador e dos meus amantes virtuais.

     Pulo da cama para a mesinha onde fica o laptop, estrategicamente instalado de forma a que a câmera tenha um bom alcance do cenário, e começo a teclar.

     Danadinha entra na sala.

     Demorô, Danadinha.

     É o Fabão, um que parece ficar vinte e quatro horas aceso.

     Danadinha: Acordado essa hora, menino?!

     Fabão: Esperando você. Liga a câmera.

     O maluco está se masturbando, como sempre.

     Fabão faz umas caretas, se contorce todo e dá um tempo. Deve ter ido tomar banho. Além de ver, gosto de imaginar o que os amigos fazem fora do alcance da câmera.

     Entra um novato, cheio de intimidades.

     Macho Viril: Oi, gostosa. Tira essa camiseta.

     Eu tiro.

     Macho Viril: Tira a calcinha.

     Eu tiro.

     Danadinha: Sou muito obediente.

     Ele já está nu.

     Viúva entra e sai da sala.

     Madruga está só espiando.

     Entram Foderoso, Maguila, Cruel, Macho2015 e até uma tal de Afrodite, perguntando se eu gosto de meninas. Não gosto, mas respondo que só curto as feias.

     Afrodite: kakakakakaka!!!

     Macho Viril sai

     Aí ele entra, na hora de sempre.

     Deixo sem respostas as perguntas de Gostoso Solitário, Casalsacana, Caio de Boca, Louro Pelado, Gato Sarado, Piruzão e Putaça.

     Toda madrugada é assim.

     Zebu: Oi, princesa!

     Danadinha: Oi, meu touro bravo!

     Zebu: Todos dormem aí?

     Danadinha: Todos! Menos uma!

     Zebu: Quem?!

     Danadinha: A sua peludinha...

     Zebu: Eu sabia!

     Danadinha: Acordada, quente e molhada. Carne em brasa!

     Zebu: Só acredito vendo!

     Danadinha: Estou indo aí!

    Saio da sala de bate papo, mas não desligo a máquina. Ponho uma camisola por cima do corpo nu e pego a bolsa de lona preta no fundo do armário, escondida sob as roupas. Abro a porta do quarto, prendendo a respiração, descalça para não fazer barulho. Aravesso o corredor, a sala, a cozinha, e saio pela porta dos fundos. Desço os lances de escada que separam o meu apartamento do quarto do zelador do prédio, na garagem.

     Empurro a porta, que está apenas encostada. Cícero sorri, esparramado na cama de solteiro, peladão. Abro a bolsa, retiro um por um os objetos que vou colocando em cima da cama: algemas, chicote, um estilete de ponta fininha e a coleira que ele gosta tanto quando eu uso.

     Repetimos as brincadeiras que me deixam machucada, porém feliz. Quando ponho a coleira, ele aperta até eu quase desmaiar. Vai me conduzindo de quatro, a chicotadas, de um lado para o outro do quartinho. Põe para tocar o funk horroroso, que fica repetindo “Vem cachorro, vem cachorro, diz que vai me enlouquecer... “ Só depois consegue se satisfazer, aos gritos de “Cadela vadia”.

    “Vai acordar o prédio inteiro, maluco!”

     Lembro-me de minha amiga Tati, que é toda certinha. Quando conto essas histórias que minha avó diria “do arco da velha”, ela diz que não consegue imaginar alguém que fala três idiomas e estudou filosofia praticando “uma baixaria dessas”.

    “Para você ver”, eu digo.

    “Tudo tem limite. Coleira no pescoço é demais!”

     “Relaxa, Tati. A modelo e atriz, famosíssima, usou coleira no desfile da escola de samba e ninguém achou estranho.”

     “Ali era de brincadeira. Uma declaração de amor ao marido.”

     “No meu caso também é uma declaração de amor, ao Zebu.”

     “Maluca!”

     Vou dizer mais o quê? Cada um sabe de si.

     Quando Cícero afrouxa o meu pescoço, eu consigo respirar, mas ainda com dificuldade. Ele diz que qualquer dia aperta até eu não poder respirar.

     “E depois?”, eu pergunto.

     “Jogo seu corpo na lixeira do prédio!”

     “E depois?”

     “Depois o caminhão do lixo completa o serviço.”

     “Ui! Malvado.”

     Volto para casa, novamente na ponta dos pés. Arrumo os objetos na bolsa e a bolsa no fundo do armário. Preciso de um banho, urgente.

     Lembro-me das palavras de Cícero Zebu, no meu ouvido:

     “Qualquer dia eu aperto até você não poder respirar.”

     Só então me dou conta de que não tirei a coleira. Cruzo com minha mãe no corredor, ela saindo do banheiro.

     “Acordada, filhinha?”

     “Estou, mamãe.”

     “O que é isso no seu pescoço?”

     “Uma coleira antidistônica. Ajuda a dormir.”

     Minha mãe balança a cabeça. E segue lentamente para o quarto.
 

 

 

 

quarta-feira, 9 de novembro de 2016


Trilha sonora

      A toada que ele conhecia desde menino diz “Adeus, Rosinha, guarda contigo meu coração”. Cantarolando esses versos, Herculano embarcou no ônibus da Viação São Geraldo, em Glória do Goitá, preparado para três dias e duas noites de estradas ruins e travessias na alma. Para trás ficaram mulher e dois filhos pequenos que ele um dia voltaria para buscar. O Rio de Janeiro o esperava de braços abertos – que nem o Cristo da folhinha que ganhou na loja de tecidos e pregou na parede da cozinha – e cheio de amor para dar.

   Fã do lamento sonoro de Zezé Di Camargo e Luciano, Helenice entoou “É o amor... que mexe com minha cabeça e me deixa assiiiiiiimmmm...”, largando o marido para trás com dois filhos pequenos, batendo a porta de casa ainda aqueles chororôs nas ideias, o da música e o dos meninos que ficaram sem mãe.  “Faz eu pensar em você e esquecer de miiiimm”. Tocou para a rodoviária de Feira de Santana, onde embarcou no ônibus da Itapemirim com destino ao Rio de Janeiro, pois já tinha até passagem comprada com antecedência e às escondidas.

     No saguão, ao lado da escada, tinha um cego agachado sobre os calcanhares, chapéu de palha para recolher os cobres e rádio de pilha no colo, de onde se ouvia “Mundo novo, Adeus, Adeus minha amada... Eu vou pra Feira de Santana, vou vender minha boiada”. Quando o ônibus de Helenice deu a partida, o de Herculano encostou na mesma plataforma, pois Feira era uma das paradas para abastecimento e esticada de pernas na longa viagem. Na subida da escada para usar o banheiro e tomar um café, ainda estava lá o cego e o mesmo radio tocando “Vou vender minha boiada... Eu sou um pobre vaqueiro, boiadeiro é meu patrão”.

     Atirou uma moeda no chapéu de palha:

     – Segure aí, meu velho, para tomar um refresco. Foi o rei do baião quem mandou.

     Quando retomou o caminho, quarenta minutos depois, Herculano enfiou uma ponta do readfone no celular que tocava musiquinha (comprado em dez vezes nas Casas Bahia) e outro no ouvido. Começou a cantar sozinho e despreocupado, como se não tivesse mais ninguém no expresso da São Geraldo, “Que falta eu sinto de um bem, que falta me faz um xodó.” Além das músicas de Luiz Gonzaga, ele gostava de ouvir Dominguinhos, Jackson do Pandeiro, Alceu Valença, repertório a que chamava de cantos do nosso povo, expressão ouvida em um programa de rádio e que achou muito bacana.

     Quarenta quilômetros à frente, Helenice enfiou uma ponta do readfone no celular que tocava musiquinha (comprado em dez vezes na loja Ricardo Eletro) e outro no ouvido. Cantava, alheia ao mundo e despreocupada, como se não tivesse mais ninguém no expresso da Itapemirim, “Quando a gente ama, qualquer coisa serve para relembraaaaarrrr”.  Além das músicas de Zezé de Camargo e Luciano, ela gostava de ouvir Chitãozinho e Xororó, João Mineiro e Marciano, Milionário e Zé Rico, Cascatinha e Inhanha, o que chamava de canções representativas do legítimo sentimento brasileiro caipira, expressão ouvida em um programa de televisão e que ela achou o máximo.

     Na parada para o almoço, em Vitória da Conquista, o ônibus da Itapemirim atrasou e foi alcançado pelo da São Geraldo. Os motoristas se conheciam, trocaram um aperto de mão, fumaram um cigarro juntos e em seguida a buzina tocou três vezes, chamando Helenice e os demais passageiros retardatários. Herculano e Helenice cruzaram-se no hall dos banheiros, um entrando apertado e outra saindo apressada. Deram uma paradinha diante do espelho, ela reforçou o batom e ele usou o pente de plástico que carregava no bolso para arrumar o cabelo.

     Olharam-se. Não se viram. O rádio ligado na lojinha que vendia café, refrigerante, biscoito e bolo de aipim tocava “Nosso destino quem sabe é Deus, é Deus, é Deus”, na voz de Dolores Duran, mostrando que havia outras trilhas sonoras no mundo.

     Na parada para o jantar, já em Minas Gerais, Herculano comeu um sanduíche de linguiça e tomou uma cerveja no balcão, depois ficou fumando, ouvindo e acompanhando baixinho uma música que não sabia de onde vinha e dizia “Já chegou contando a história, bebeu água e foi-se embora... Nem se despediu de mim”. Sentiu um aperto no coração e quase que chorou um pouquinho, com saudade dos filhos.

     Helenice comeu um misto quente e bebeu uma fanta laranja, na mesinha de canto, depois encostou-se ao ônibus, colocou o fio no ouvido e ficou escutando uma regravação muito linda do sucesso Menino da Porteira, feita pelo cantor Daniel, um artista que ela admirava. O verso “Nos caminhos desta vida muito espinho eu encontrei” a fez chorar um pouquinho, com saudade dos seus meninos.

     No meio da manhã de um domingo lindo e ensolarado estavam na Rodoviária Novo Rio. Helenice perguntou à moça do balcão de informações como fazer para ir até a Rocinha. A moça disse que o melhor e mais prático era pegar um táxi, mas se quisesse ela poderia ir até o terminal logo em frente, entrar no ônibus para São Conrado e descer no ponto diante da comunidade. Herculano se aproximou do guarda e pergunou como fazer para ir até a Rocinha. Recebeu a mesma orientação, com a ressalva de que bom mesmo seria ir de táxi.

    Helenice resolveu comer um pão com manteiga na lanchonete, antes de qualquer coisa, e achou engraçado a atendente estar cantando “Eu vou tirar você desse lugar, vou levar você para ficar comigo”, pois também gostava muito de Odair José. Herculano resolveu passar antes no banheiro, achou ruim ter que pagar para fazer xixi e lavar o rosto, e achou engraçado o rapaz que gira a roleta de acesso estar cantando “Eu vi o sol, vi a lua clarear, eu vi meu bem dentro do canavial”, com uma voz bem parecida com a de Jackson do Pandeiro, até mesmo um pouco fanha e também cheia de malícia. Sorriu enquanto lavava as mãos na pia e usava o seu pente de plástico.

     Herculano e Helenice acharam logo que o Rio de Janeiro era uma cidade muito musical.

     No coletivo da linha São Conrado – Rodoviária, Helenice contava os minutos para encontrar a prima Rosicleide, que trabalhava como manicure e já tinha conseguido uma vaga para ela no salão pertinho de casa. O salário seria pequeno nos meses de experiência e aprendizado, então ficaria morando com a prima, mas logo alugaria o próprio barraco. Três bancos atrás, Herculano fazia planos de encontrar o cunhado Roserval, com quem dividiria moradia no primeiro momento. Não sabia muito bem com que o sujeito trabalhava, mas ele fora muito seguro no último telefonema:

     “Pode vir que está garantido. O servicinho é um pouco arriscado, mas o dinheiro é bom e isso é o que importa.”

     Motorista e cobrador do ônibus iam cantando, juntos, um quase pagode gostoso que dizia assim:

     “Deixa a vida me levar, vida leva eu...”

     Passageiros os acompanhavam, pois se tratava de um sucesso popular, que tocava na novela e tudo. Helenice sorria. Herculano também. Estavam numa cidade muito musical.

     Nesta mesma noite Herculano saiu com o cunhado para tomar uma cerveja na birosca perto de casa, quando todas as informações sobre o trabalho que o aguardava seriam passadas. Estavam na segunda garrafa, ainda na troca de historinhas familiares de lá e de cá, quando o bando armado chegou, gritando e dando tiros para o alto. Roserval pulou mesas, cadeiras e muros, desaparecendo em direção às luzes que dançavam lá no alto. Herculano tentou se explicar, mas não deu tempo.

     Segunda-feira, nas primeiras horas do dia, o corpo do desconhecido ainda estava estirado na escadaria de acesso ao morro, bem diante da birosca. A caminho do trabalho, Helenice retirou o headfone que enfiara no ouvido tão logo saíra da cama e fez uma oração pela alma do morto. Catou um pedaço de jornal que voava por ali e espalhou as folhas sobre o cadáver, pois começava a cair uma chuvinha fina. O grupo de músicos amadores, que vinha de alguma domingueira noturna e descera da Van animado, espantava o sono com um samba:

     “Tá lá o corpo estendido no chão. Em vez de rosto uma foto de um gol”.

     Voltou a enfiar o fio no ouvido. Sentiu saudade de casa. Vontade de ligar para os meninos e dar alguma notícia. Mas qual?

 

 

 

 

AUTORES DA TRILHA SONORA:

Asa branca. Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira

Feira de gado. Luiz Gonzaga e Zé Dantas

Eu só quero um xodó. Dominguinhos e Gilberto Gil

Fio de cabelo. Chitãozinho e Xororó

Nosso destino. Dolores Duran

Nem se despediu de mim. Luiz Gonzaga e João Silva

O menino da porteira. Teddy Vieira e Luis Raimundo

Eu vou tirar você desse lugar. Odair José

Zabelê. Refrão de samba de roda de autor desconhecido

Deixa a vida me levar. Serginho Meriti e Eri do Cais

De frente pro crime. João Bosco e Aldir Blanc

 




sexta-feira, 4 de novembro de 2016


A música

     – Tem horas que a vida é que nem aquela música – ele disse, pegando a xícara e a garrafa térmica.

     – Que música? – Ela perguntou, picando cebola e esfregando o olho com as costas da mão.

     – Aquela da tarde e do viaduto. Um dia cai tudo mesmo em cima da gente. Geralmente, quando a gente pensa que as coisas estão nos conformes.

     Ela não disse nada. Começou a lavar o pimentão.

     – Está fazendo uma salada? – ele perguntou.

     – Refogado para a carne moída – ela disse.

     Ele pingou adoçante no cafezinho, bebeu e foi até a área de serviço. Olhou pelo basculante.

     – Parece que vai chover.

     – É. Está previsto.

     Voltou para a cozinha e botou a xícara na pia.

     – Por que você falou aquilo? – ela perguntou.

     – Aquilo, o quê?

     – Da música que diz que cai a tarde feito um viaduto.

     – Cai, não. Caía.

     – Isso. Caía a tarde...

     – Porque é assim que estou me sentindo, como se um viaduto de aço e concreto tivesse desabado sobre a minha cabeça.

     – É por causa de ontem? Você vai arrumar outro emprego logo.

     – Sei não.

     – Vai. Você é um profissional conhecido e respeitado.

     – É pouco.

     – Meu Deus! Onde já se viu? O que é que conta mais do que isso, criatura?

     – A idade. Estou começando a ficar fora do perfil desejado.

     – Perfil uma ova! – ela disse, misturando os temperos ao óleo e ao caldo de legumes, mexendo com a colher de pau. – Você é bom, meu amor. E isso é o que importa.

     – Quem é bom não perde emprego.

     – Como não? Você não disse que pediram a vaga para um protegido do diretor? Então?! Você não perdeu, tomaram. Essa lei não é de mercado, é de mercadorias.

     O telefone tocou e ele foi atender. Quando voltou, ela misturava a carne moída ao refogado.

     – Era da empresa. Me deram a lista de documentos para a rescisão.

     – O que esse rapaz que entrou em seu lugar sabe fazer?

     – Nada. Era meu estagiário até ontem. Estava começando a aprender. Um garoto, podia ser meu filho.

     – Não é um caso isolado – ela disse, provando a comida.

     – Eu sei.

     – Acontece a toda hora.

     – Eu sei.

     – Nas melhores empresas.

     – Pois é.

     Ele perguntou se ela queria ajuda para pôr a mesa. Ela disse que ele poderia abrir um vinho. Ele disse que não tinha motivos para brindar.

     – Brindemos à falta de motivos – ela respondeu.

     E riu.

     Ele não riu.

     – Não conta para o Júnior não, tá? – ele pediu, durante o jantar.

     – Por que? O nosso filho conhece a vida, sabe como é que a banda toca.

     – Prefiro. Conto quando arrumar outro emprego. Digo que  fiz uma troca.

     – Você que sabe – ela disse, enchendo os copos.

     Ele começou a servir a massa e a carne moída:

     – E o Júnior, não vem jantar?

     – Disse que chegaria tarde. Tinha um chope com uns amigos.

     Ela levantou-se e foi até o aparelho de som.

     – Vou colocar uma música.

     – A que fala da tarde e do viaduto?

     – Não. Uma que diz que amanhã será outro dia.

     Ela sorriu novamente.

     Eles brindaram.

     O  Júnior chegou.

     – Oi, pai. Oi, mãe. Já jantaram?

     – Acabamos neste momento. Ainda está tudo quente – disse a mãe.

     – Foi bom o chope? – perguntou o pai.

     – Foi. Comemoramos a promoção de um amigo. Era estagiário, virou chefe. Lá na empresa que você trabalha.

     Ela pegou as xícaras para o café. Ele preferiu um conhaque. Na cabeça, o verso e a melodia martelavam: “Um bêbado trajando luto...”
Do livro "Aquela música" (Contos), Editora Myrrha, 2016