Irmandade
Lá em casa era assim: a gente apanhava no
atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num
canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço
era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira,
corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com
menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um,
apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que
lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.
O pai batia melhor quando bêbado. Quando
chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia
ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos
assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de
cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento
físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta
dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada;
então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.
A dor da mãe não era mania, não. Nem
combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça
explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos
miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem
dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém
merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio
taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente,
lamentou.
Mas até que os dias difíceis não foram
muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés,
depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar
muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta
de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que
atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela
noite. E não passou.
— Cirrose — disse ele.
— Surra bastante o fígado, não é, doutor? —
eu perguntei.
— Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os
órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.
O doutor era um sujeito engraçado.
Depois de deixar o corpo do pai no
cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e
reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas
palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na
novíssima vida que nos esperava.
Disse a eles que sem mãe, e agora sem o
pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo
apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as
próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas,
pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria.
Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.
Fiz a mochila de cada um, passei batom e
alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e
ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também
ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o
que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o
vigor do chute do pai.
Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei
me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de
labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e
relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá
feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida.
Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia
um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe
parece que aumentava.
(Do livro "Contos da vida absurda". Casarão do Verbo, 2014)
Nenhum comentário:
Postar um comentário