quinta-feira, 21 de dezembro de 2017


Mãos dadas


 

 

     Eu tinha verdadeira adoração por ela. Um dia perguntou se eu não sentia vergonha pelo fato de ela ser puta. Eu disse você é feliz assim e isto me faz feliz, ou uma besteira dessas. Na verdade, não me incomodava nem um pouco, estava mesmo era me lixando pros seus draminhas. Ela fingiu acreditar e abriu o quebra-vento, depois balançou o cabelo prum lado e pro outro, como gostava de fazer quando saíamos de carro.

– Mas você tem vergonha de sair de mãos dadas comigo – ela disse.

– Claro que não – respondi.

– Então por que não passeia de mãos dadas comigo por aí?

     Comcei a ficar puto com aquele papo, sempre fico puto com esses papos, mas procurei não demonstrar:

– Sabe o que é? Acho a maior besteira andar por aí de mãos dadas ou de

braços dados. Não ando assim com ninguém, acho que nem sei andar desse jeito, não acerto o passo.

– Nem com a sua mulher você andava?

– Não.

     Eu disse que tinha verdadeira adoração por ela, mas que detestava aquela conversa. Sempre gostei muito de putas, mas detesto conversa de putas. Ou bebem demais e ficam escrachadas, abrindo as pernas fora de hora e dizendo palavrão, ou ficam com essa mania de mulherzinha, querendo andar de mãos dadas e de braços dados, fazer compras com a gente no shopping.

     Ela pegou uma escova enorme na bolsa e começou a ajeitar os cabelos, desarrumados pelo vento. Tinha cabelos bonitos, putas geralmente têm cabelos bonitos porque cuidam bem deles. Depois pegou o batom e começou a avermelhar os lábios.

– E à missa? Você iria à missa comigo? – perguntou.

– Claro que iria.

– Mentiroso.

– Não me chama de mentiroso. Vou à missa com você qualquer dia desses,

você pode até apostar.

– Qualquer dia desses, não. Vamos hoje – e tentou me beijar daquele jeito

que parecia beijo de cachorro, a língua para cima e para baixo, uma luva úmida no meu pescoço.

– Pára.

– Tá vendo? Além de vergonha, tem nojo de mim.

     Eu disse que não tinha nojo coisa nenhuma. Ela insistiu que eu tinha nojo dela, por isso não gostava de beijo na boca nem de lambida no pescoço.

– Já disse que não tenho nojo de você, porra! – rosnei, batendo com a mão

espalmada no painel do carro.

     Ela se assustou, me olhou até com medo, mas mesmo assim voltou ao lengalenga. Puta é foda mesmo:

– Então passeia de mãos dadas, me leva à missa, ao cinema, ao restaurante,

me dá um beijo de novela.

– Não vejo novela.

– Então me dá um beijo de cinema.

Eu disse não enche o saco e ela berrou não fala assim comigo, seu cavalo.

Perdi de vez paciência, meti o cotovelo nos peitos dela e gritei cala a boca agora, sua puta escrota. Ela disse cala a boca é o cacete e blasfemou que puta era minha mãe. Porra, logo minha mãe, a vaca não sabia mesmo com quem estava se metendo. Se tem uma coisa que não admito é que falem de minha mãe, desde pequeno, quando quebrei a cara de um colega de escola. O merdinha falou que minha mãe ficava na zona enquanto eu dormia.

     Segurei o volante do carro com uma mão e com a outra dei uma bofetada certeira. Ela chorou, xingou e gritou olha para a frente, seu débil mental. E quando olhei para a frente já estava enfiando o carro em cima do poste.

     Não foi por querer que direcionei para o poste o lado do carona. Não foi por cafajestada que salvei a minha pele e acabei com a vida da única mulher que talvez tenha amado na vida. Eu tinha, mesmo, verdadeira adoração por ela. Juro que se ainda desse tempo eu iria de mãos dadas com ela até para o inferno.
 
(Do livro "Grande homem mais ou menos", Editora Bertrand Brasil, 2007)
 

 

 

 

 

sexta-feira, 8 de dezembro de 2017


Mangas vermelhas

Luís Pimentel

          Marcaram encontro para o fim da tarde e pegaram o caminho da chácara. Pararam diante do muro, logo depois do portão principal, no trecho onde sabiam que havia alguns tijolos quebrados. Ali seria mais fácil escalar. Ficaram um tempo escondidos atrás do juazeiro grande que tinha em frente à propriedade, contando o tempo para agirem logo depois que o Seu Bonifácio fosse para o armazém e o caseiro se embrenhasse lá pelos fundos, a cuidar dos porcos.

     O magrinho usava a camisa de pano remendada no peito e abotoada até o pescoço, calção e tênis. O de cabeça raspada vestia camiseta surrada, calção e sandálias de dedos. Carregava uma sacola de pano debaixo do braço.

     – Você está parecendo um sacristão de igreja, com essa camisa fechada até a garganta, como se estivesse se enforcando. E ainda por cima remendada! – disse o careca, rindo do magrinho.

     – Remendada, porém limpa – reagiu o outro. – Pior é essa tua cabeça raspada. Parece mais um moleque de rua. Quem fez isso?

     – Minha mãe. Tinha piolho – respondeu ele, entregando a sacola. – Toma. Já sabe o que fazer, não é?

     – Por que eu tenho que pular o muro de novo? Por que dessa vez não pula você? – perguntou o que parecia um sacristão.

     – Porque você tá de tênis.

     – Por que você nunca vem de tênis?

     – O meu tá rasgado.

     – Sei. Muito espertinho é o que você é.

     De onde estavam dava para ver o verde e amarelo das frutas na mangueira carregada.

     – Pega só as mais graúdas – recomendou o que parecia um moleque de rua.

     O que usava tênis fez cara de preocupação:

     – Ouvi dizer que Seu Bonifácio contratou um empregado novo.

     – Duvido. Aquele mão-de-vaca?

     – E que o sujeito passa o dia aí dentro, é bem mal encarado e carrega uma arma de fogo na cintura.

     – Bobagem. Não se esquece de amarrar bem a boca da sacola e de jogar pro lado de cá. Recolho aqui e fico te esperando, pra gente comer manga até cagar amarelo – disse o cabeça raspada, ajudando o outro a escalar o muro, com a sacola pendurada no pescoço. Voltou a se esconder atrás do pé de juá, escutando o barulho o barulho do tênis do magrinho nas folhas e nos gravetos.

     Depois de uns momentos em silêncio, ouviu os disparos. Dois. E o barulho de alguém correndo entre galhos. Encostou-se ao muro, para ouvir melhor, e esperou mais um pouco, coração saindo pela boca. Quando se deu conta de que passara muito tempo sem nem sinal do amigo, disparou na carreira a caminho de casa.

     Os pais o aguardavam para jantar. Disse que não tinha fome e foi direto para o quarto, sem tomar banho. Enrolou-se no cobertor, escondendo bem a cabeça para não escutar nada. Cochilou e acordou no meio da noite, molhado de suor, com febre, batendo o queixo. Continuou na cama, na mesma posição, até o dia clarear e ouvir o choro da vizinha na sala, dizendo para sua mãe que o menino magrinho não voltara para casa. Que vira quando os dois amigos saíram juntos, à tardinha, carregando uma sacola de pano.

     A mãe entrou no quarto, ofegante e abrindo a janela, lhe chamando pelo nome. Ele bateu os olhos num belo pedaço de céu, sem uma nuvem sequer. Não conseguia entender o que as duas mulheres falavam, em meio ao choro, a mente presa na imagem que invadia e tomava conta de tudo, trazidas pela febre ou pela imaginação.

     Só via o amigo se aproximando, com um sorriso contente que atravessava a parede ou pulava a janela, o botão da camisa apertando o pescoço e a sacola carregada de mangas. Verdes, amarelas e até umas vermelhas que pareciam de sangue.
(Publicado no jornal CÂNDIDO, edição de dezembro 2017)

terça-feira, 21 de novembro de 2017


CADERNO DE RASCUNHOS
 
– Amanhã serei passado!

E foi para casa disposto a passar a vida a limpo.

Atirou pela janela do décimo andar o caderno de rascunhos que sempre fora e caiu desarrumado na calçada. No dia seguinte, os seus pedaços tinham sido levados pelo vento.

O que sempre acontece com as anotações sem importância.




ANÚNCIO
Com o panfletinho da vidente amassado entre os dedos, Dorinha subiu as escadarias do sobrado na Rua da Passagem, a boca seca, o peito disparado.

– Estive aqui há uma semana, madame. O anúncio promete trazer o amor de volta em três dias.

A profissional não se abalou:

– Paciência, filha. Você não tinha me dito que o moço era marinheiro.



AS HORAS

Quartinho da Rua de Santana. Ele, na janela, contempla o imenso relógio da Central. Ela se veste às pressas, olho no reloginho de pulso.

– Nem um beijo?

– Eu, hein?! Quer sexo ou amor?

Durante o conhaque no pé-sujo, ele promete que nunca mais. Ela diz "volte sempre" e some em direção à Praça Onze.


 
ESPELHO
 

Manhãzinha, a mãe arrastava as sandálias de couro pelo corredor.

Ficava quieto na cama, o cheiro de café coado e de aipim cozido se espalhando pela casa.

Assim ainda hoje: acha que escuta o barulhinho do couro no cimento, os aromas matinais que trazem a saudade quando pula assustado para fazer a barba.

O passado enrugado no espelho, lágrima cinza escorrendo pelos fios brancos que lhe cobrem a cara.


 
HERANÇA
 

No princípio era o verbo, doar-se absoluto, o eterno enigma, fazer e desfazer e refazer as criaturas.

No princípio o amor, os cães sem dono, a terra tida e prometida de silêncios e quereres acreditar em todas as coisas.

Então, o filho foi levado ao alto mais alto do monte e ouviu do pai, ouro nos dentes, a profecia infame e infamante

– Um dia, tudo isto será teu!
(Do livro "Cenas de cinema – conto em gotas". Myrrha, 2011)

 
 
 
 

terça-feira, 7 de novembro de 2017


Tempo difíceis
(Luís Pimentel)
 
Cenário: Ponto de ônibus

Personagens: Homem Alto, Homem Baixo, Mulher, Motorista do Ônibus

CENA 1

Homem Alto: Com licença. Uma informação, por favor.

Homem Baixo: Pois não.

Homem Alto: O sete, sete, sete para aqui?

Homem Baixo: Sim.

Homem Alto: Obrigado.

Homem Baixo: Não há de quê.

Homem Alto: Demora muito a passar?

Homem Baixo: Não muito. Chega logo.

Homem Alto: Tomara

Mulher (Para Homem Alto): O senhor vai pegar o sete, sete, sete?

Homem Alto: Vou. A senhora também?

Mulher: Também. Sempre pego.

Homem Alto: Estou pegando pela primeira vez.

Mulher: Vai gostar.

Homem Alto: É bom?

Mulher: É muito bom. Anda rápido.

Homem Alto: Melhor assim. Tenho pressa.

Mulher: Sei.

Homem Alto: O trajeto demora mais ou menos quanto tempo?

Mulher: Depende.

Homem Alto: Depende?

Mulher: De onde o senhor vai ficar.

Homem Alto: Ah, sim, claro. Fico no Mercado Central.

Mulher: Eu também. Demora só alguns minutos.

(Ônibus chega)

CENA 2

(Os três embarcam)

Homem Baixo (retirando uma arma da cintura): É um assalto. Todos quietos! (Para o motorista) Passa a féria!

Motorista: Não tenho nada. É a primeira viagem de hoje.

Homem Alto: Por que você não nos disse que ia assaltar o ônibus?

Homem Baixo: Não enche o saco! (Para o motorista) Não entrou nenhum pé rapado hoje nessa carroça?

Motorista: Não. Vocês sãos primeiros. Ninguém pega mais esse ônibus. Tem muito assalto aqui.

Homem Alto (Para a mulher): A senhora está muito calma e tranquila...

Mulher: Fazer o quê?

Homem Alto: Sabia que esse sujeito é assaltante?

Mulher: Sabia. Viajo sempre junto com ele.

Homem Alto: E mesmo assim entrou no ônibus?

Mulher: Não tenho nada que ele possa levar.

Homem Baixo: Encurta o papo! Passa a carteira e o celular.

Homem Alto (Entregando os pertences): Taí.

Homem Baixo (Mexendo na carteira): Só isso?

Homem Alto: Estou desempregado.

Homem Baixo: Você também?

Homem Alto: Pois é.

Homem Baixo: O celular também não é grande coisa.

Homem Alto: Não. É de camelô.

Homem Baixo: Tempos difíceis.

Homem Alto: Ô... Nem fale.

Motorista: Mercado Central! Quem desce aqui?

Mulher: Eu!

Homem Alto: Eu também.

Homem Baixo: Também vou ficar aqui. (Para homem alto) Está indo aonde?

Homem Alto: Vou ver um emprego.

Homem Baixo (Devolvendo a carteira): Toma. Vai precisar dos documentos.

Motorista (Para Homem Alto): Como o senhor vai retornar? Ficou sem dinheiro.

Homem Alto: Não sei. A pé.

Motorista: Espere nesse mesmo ponto que eu lhe pego na volta.

Homem Alto: Obrigado.

Motorista, Homem Baixo e Mulher: Boa sorte.

Homem Alto: Vou precisar.
(Publicado no Jornal Rascunho 211, novembro 2017)

sábado, 28 de outubro de 2017


Bina

     Meu nome é Balbina – se é que Balbina é nome, sei lá de onde meu pai tirou isto – mas o senhor pode me chamar de Bina, como todo mundo aqui: Bina pra lá, Bina pra cá.

     Os mais educados passam boa-tarde, Bina, às vezes até Dona Bina. Os moleques assobiam, gritam Bina Doida, levantam minha saia e bagunçam meu cabelo. Uns vêm com o diabo, outros Deus que manda – como a vizinha Dona Lola, que traz a marmita quentinha mesmo sem eu pedir.

     Eu digo Deus lhe pague, Dona Lola, ela responde Amém e a vida segue, aí olho pro céu e vejo anjos batendo palmas. Vou querer mais o quê?

     Bina não tem um filho sequer que a ampare? Não. Nem sobrinhos, primos, irmãos, nada, nem homem? Deus me livre. Não tenho nem quero ter. E até que já tive, mas não prestou. Filho, até que já fiz, mas não vingou. Ô, leva eu, minha saudade, que eu também quero ir, minha saudade, quando chego na ladeira... deixa estar.

          Deixa estar, que nasci nua e estou vestida. Mais ou menos vestida. Nem sempre fui um traste, nem sempre vivi de esmolas. Areei muita panela de alumínio em casa de rico, lavei lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, sequei coceira, frieira e catarro de menino amarelo.

     Vou me queixa? Pra quê?

     Medo da morte? Por quê?

     Só tenho medo da vergonha, da humilhação, dos desaforos, as tripas soltando o peso, o corpo largando os pedaços, o vento carregando os sonhos. Bina é doida? Vocês que pensam.

     Tentei bolsa-escola, mas não sei ler nem escrever. Também fui no bolsa-família, mas não tinha família para apresentar. Deixa. Vim ao mundo sozinha, sozinha vou partir já, já. Nem fome, nem sede, nem frio me metem medo. Só me assusta a noite. Melhor dizendo, o vento da noite, o barulho que o vento da noite faz.

     Zuuuuummmm é o vento da noite. Nas telhas. Nos ossos. Zuuuuummmm chamando Biiiiinaaa! Cadê tu, menina?

     Era o meu pai.

     Vamos comigo, Bina, prender o gado. Vamos soltar o gado. Ordenhar as vacas. Faz um carinho na teta da vaca, filha, faz, na testa do cabritinho que ficou órfão. A mãe do cabrito morreu. A minha mãe cozinha maxixe nas panelas de barro, no fogão à lenha, meu pai secou até virar um graveto.

     Biiiiinaaa!

     Só na escola, onde entrei, aprendi que eu era Balbina – se é que Balbina é nome. Entrei, mas não fiquei. Saí pela mesma porta. Conversa difícil, palavreado, meu pai morrendo e eu aqui?

     Mãe também se foi. Foi-se o cabrito que a cabra deixou. Foi o marido, o filho, a cerca do roçado, a estrada era uma pedra atrás da outra, vista da carroceria do caminhão.

     Ficou melhor aqui. Vocês que pensam.

     Tome bronca, humilhações. Bina faz isto, faz aquilo.

     Biiiiinaaa!

     Areia panelas, lava lençol sujo de sangue, toalha suja de bosta, seca coceira, frieira e catarro de menino amarelo.

     Tinha vestido florido? Não tinha.

     Tinha passeio no domingo? Não tinha.

     Tinha direito de dormir e sonhar?

     – Biiiiinaaa! Acorda, Bina!

     Não tinha um documento sequer, mas agora tenho todos. Fui tirando, um a um, esse para ser atendida, aquele para os exames, o outro para facilitar a internação. Fui facilitando tudo. Quer identidade? Pois tome. Deite assim, assim ou assado. Deito. Enfia câmara, borracha, ferros, em cima, embaixo, nas veias, nos buracos, na alma, eu ali, Bina, faça força, enquanto me carregam pela mão, tubos arrastando, escadas, luzes, pavores, e eles todos pensando que eu não sei que já vou morrer.

     Que pensem.
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)
 

 

sábado, 23 de setembro de 2017


Irmandade

 

     Lá em casa era assim: a gente apanhava no atacado e no varejo. No atacado, quem agia era o pai. Juntava todo mundo num canto da casa, um colado no outro para não dispersar, e descia o braço. Braço era maneira de dizer. Na verdade, ele vinha com bainha de facão, ripa de madeira, corrente de ferro com cadeado e tudo, e até chapa de aço. Uma lenha. A mãe, com menos força no muque, cuidava da ação no varejo, exemplando de um em um, apoiada no cinturão de couro, tomada de ferro elétrico, cabo de vassoura, o que lhe caísse à mão. Tudo dividido, irmãmente.

     O pai batia melhor quando bêbado. Quando chegava do bar tropeçando nas cadeiras da sala, a turma já sabia que o couro ia ser caprichado. Pelo menos um tabefe para cada copo ingerido, mais ou menos assim. A mãe já tinha outras manias. Funcionava melhor no ritmo de uma dor de cabeça crônica, que tinha desde menina. Quanto mais atormentada pelo sofrimento físico, mais vontade de sovar a prole. Ficava com a testa vermelha de tanta dor, a pobre, suando frio na fronte. E tome esforço, na tortura da molecada; então, suava mais ainda. O suor materno era um terror para nós.

     A dor da mãe não era mania, não. Nem combustível para animar as surras. Descobrimos isso no dia em que sua cabeça explodiu e os médicos disseram pro pai que ela tinha coisa muito ruim nos miolos. O pai ficou triste. E preocupado, porque não teria mais com quem dividir a tarefa sôfrega. Tanto filho para espancar sozinho, coitado, ninguém merece. Ainda mais com a tropa se desenvolvendo, encorpando, os mais velhos já meio taludos e dificultando o manejo do porrete. Teria dias difíceis pela frente, lamentou.

     Mas até que os dias difíceis não foram muitos, porque logo, logo o pai começou a inchar; primeiro as mãos e os pés, depois as maçãs do rosto, e um dia foi carregado pelos vizinhos depois de botar muito sangue pelo nariz. E não foi, como pensaram a princípio, reação violenta de nenhum de nós. Nunca fomos de desrespeitar pai e mãe. O mesmo médico que atendeu a nossa mãezinha disse para a gente que o papai não passaria daquela noite. E não passou.

     — Cirrose — disse ele.

     — Surra bastante o fígado, não é, doutor? — eu perguntei.

     — Surra bastante tudo, meu jovem. Todos os órgãos, no atacado e no varejo — respondeu, com um sorriso de canto de boca.

     O doutor era um sujeito engraçado.

     Depois de deixar o corpo do pai no cemitério, dentro de um caixão que os vizinhos fabricaram, voltei para casa e reuni os irmãos. Na qualidade de mais velho, eu tinha que dizer algumas palavras, nem que fosse apenas para desejar boa sorte a todos na novíssima vida que nos esperava.

     Disse a eles que sem mãe, e agora sem o pai, cada um ia ter que cuidar do próprio destino. Depois de tanto tempo apanhando em casa, estava na hora de neguinho aprender a tropeçar com as próprias pernas. Pancada garantida, três vezes ao dia, nunca mais. As meninas, pelo menos, poderiam arranjar maridos que, com sorte, gostassem da pancadaria. Para os meninos, seguramente, o futuro seria mais incerto.

     Fiz a mochila de cada um, passei batom e alfazema nas moças, cortei as unhas e penteei os cabelos dos moleques, e ordenei que pegassem a trilha desejada, em busca do próprio caminho. Também ganhei a estrada, depois de trancar a porta de casa, deixando para trás tudo o que havia lá dentro, lembranças como o cheiro do suor da mãe, imagens como o vigor do chute do pai.

     Dei muita cabeçada pelo mundo, mas acabei me ajeitando aqui na obra. O trabalho é duro e à noite, depois de um dia de labuta, o corpo reage como se tivesse levado uma surra de vara: entre moído e relaxado, meio sofrido e meio orgulhoso. Não sei dos irmãos, o que o mundo terá feito deles, se batem nos próprios filhos ou se ainda apanham muito da vida. Lembro mais deles nos fins de semana, quando a sede aumentava e o pai recebia um caboclo bebedor. Nesses dias, por coincidência, a dor de cabeça da mãe parece que aumentava.

(Do livro "Contos da vida absurda". Casarão do Verbo, 2014)
 
 

quarta-feira, 13 de setembro de 2017


Compositor inédito

      “A gente começa a beber por causa das más companhias, continua por causa das boas e para quando a vida não faz mais sentido”, disse o velho. “Parei porque a minha está uma merda”, sentenciou, abrindo a garrafa térmica e se servindo de mais um café. Pendurou o copo, mas triplicou a dose de café e de cigarros. Tomava baldes diários e fumava um atrás do outro.

     O velho era meu tio. Assim o chamava, mas ele nem era tão velho. Tinha poucos anos a mais do que eu. Era o meu tio mais novo, sou o primeiro dos sobrinhos, o que encurtava a diferença. Antes de morrer, minha avó pediu:

     “Cuide do seu tio. Só confio em você para essa tarefa”.

     Também antes de morrer, minha mãe fez o mesmo pedido. Eu não poderia negar, nem a uma nem à outra.

     Decidi que viveria para ele e por isso jamais me casei. Há quem não se case porque se dedica aos pais ou a cuidar de um irmão doente. Mas por causa de um tio? Mulher nenhuma entende, claro que não. Eu explicava que a dedicação integral era para ficar mais perto e ouvir suas músicas, pois ninguém além de mim faria isso por ele. Aí elas entendiam menos ainda.

     O velho era compositor. “Compositor inédito!”, como gostava de repetir, com ar orgulhoso. De tanto ele bater nessa tecla, eu até achava, quando menino, que ser compositor inédito era algo muito importante. Nem entendia como alguns permitiam que suas músicas fossem gravadas, quando o bacana mesmo era ficar escondido de tudo e de todos, sem se misturar à algaravia do show business.

     A primeira que ele me mostrou, entoando um violão muito mal tocado (outra característica original de meu tio), tinha um verso que nunca esqueci.

     Dizia assim:

Vou morrer de caganeira, numa esteira

Pelo amor da minha linda jardineira...

     Repetia várias vezes, com variadas entonações, batendo com dois dedos nas cordas do instrumento. E eu achava o máximo. Repetia para os meus amigos os versos tortos e o som atravessado do violão, caprichando na imitação da voz de porta empenada de meu tio, e minha mãe sempre me repreendia:

     “Só você mesmo, para gostar das maluquices que o Abinoel inventa”.

     Maluquices horríveis mesmo, justiça seja feita. Mas eu gostava. E jamais soube porquê, se nem sequer as entendia.

     Abinoel. Esse era o nome do meu tio. Mas eu o chamava de Tio Bino. Ele preferia o apelido Noel. Dizia que era nome de artista, que esse fora um grande compositor, embora tenha fraquejado diante da sedução do sucesso e se permitido ser muitas vezes gravado e regravado.

     Morava num quarto e sala, por isso tive que abrigar meu tio na salinha apertada mesmo. Eu ficava no quarto, e ainda bem que ali tinha uma porta. Assim podia fechá-la quando cansava de ouvir o dindon-dindon desafinado, a noite inteira. O velho virava a madrugada tomando café, fumando e compondo.

     Quando passava para a cozinha, ele me segurava:

     “Escuta essa!”

     E mandava ver.

Cada uma mais maluca do que a outra, que nem essa que ficou tão inédita quanto todas, mas pela qual eu tinha um carinho especial. Dizia:

Meu cachorro me levou para as estrelas

Num foguete de cristal e papelão

Viajei numa poltrona de primeira

E voltei num balão de São João.

     “Essa é bonita, tio Bino. Merece ser gravada”.

     Pronto. Para quê? Nunca mais tocou nem cantou a música.

     Abinoel Bino Noel não queria nenhuma espécie de registro de suas criações, para não correr o risco de chegar aos ouvidos de nenhum cantor desaviado. Quando compunha, eu não podia sequer me aproximar com o celular na mão. Temia que traísse sua confiança. Guardou todas na memória, e só as cantava quando estava com vontade e ao lado de pessoas “que merecem ouvir”, ele dizia.

     Estive sempre entre essas pessoas.

     “Desde que não me venha com conversa de gravação, disco, rádio, mercado, essas besteiras”.

     Um dia, o velho disse “senta aqui”, eu me sentei e ele falou:

     “Escuta o começo desse samba”.

     Futucou nas cordas do vilão, afinando-o à sua maneira, e quando o som ficou pior do que estava ele cantarolou:

Vejo que a morte me acena da janela

Me olha, olho pra ela

Peço que esqueça de mim...

     Parou por aí e ficou me olhando, como se esperasse um comentário qualquer.

     Mantive o silêncio e ele disse:

     “Não parece a atmosfera do Nelson Cavaquinho?”

     “Parece, tio. Tudo que fala em morte me lembra logo as canções do Nelson, especialmente daquelas em parcerias com o Guilherme.”.

     Ele sorriu, satisfeito.

     “Ficaria muito bonito na voz de uma cantora que eu conheço”.

     O tempo fechou.

     Guardou o violão, catou o maço de cigarros e foi tomar café.

     Fui atrás:

     “Tio, me desculpe, mas não consigo entender que um artista não sonhe em dividir a sua arte com o público”.

     “Minhas músicas não são divisíveis. São feitas para mim.”

     “Que atitude mais egoísta, tio Bino. As coisas bonitas que fazemos só se completam eu sua beleza quando chegam a outros olhos, ouvidos, corações.”

     “Palavras.”

     “Podem ser.”

     “E piegas.”

     “Mas acredito nelas. E o senhor deveria acreditar mais em seu taco. Por que tanta insegurança?”

     “Não é insegurança.”

     “Então é egoísmo mesmo.”

     “Você não entende, cara.”

     Continuei não entendendo, mas a pressão deu resultado. Na manhã seguinte, enquanto me preparava para sair de casa, tio Bino Noel me pediu que deixasse com ele o meu gravador. E quando retornei, à noite, recebi a fita onde estava escrito na etiqueta:

     20 CANÇÕES INÉDITAS DE ABINOEL BATISTA

     “Que tal?”, perguntou.

     “Abinoel Batista”, soletrei.

     “Noel que nem o Rosa, e Batista que nem o Wilson. Já ouviu falar da polêmica envolvendo os dois?”

     “Já. E meus parabéns, grande compositor inédito”.

     “Posso deixar de ser, se você conseguir. São suas, faça com elas o que quiser.”

     Passei a noite ouvindo suas músicas, em meu quarto. Na manhã seguinte fui acordar meu tio e o encontrei sem vida, a cabeça despencando do colchão e as pernas estiradas sobre o violão, com quem sempre dormia.

     A fita? Foi no caixão com ele. Eu mesmo a coloquei. Perdeu a graça.
 
(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2017)
 

sexta-feira, 11 de agosto de 2017

Garras


A senhoria tinha garras afiadas, sempre pintadas de um vermelho sangue, da mesma cor dos lábios que ela vivia mordendo e exibindo, fazendo beicinhos.

     O que matava era o cheiro de vodca barata.

     – Quero que você seja muito feliz aqui.

     É possível ser feliz dentro de um quarto minúsculo no Catumbi? Engoli em seco:

     – Não tenho do que me queixar.

     Estava quase na hora em que o amante da senhoria costumava chegar. Era enorme. Dava dois de mim.

     – Você tem uns olhos lindos – ela gemeu.

     Ele empurrava a porta sempre a essa hora, com cara de poucos amigos. Às vezes dizia uns palavrões. Às vezes cobria a infeliz de pancada.

     – Gosto muito desse seu sorrisinho safado – ela insistiu.

     O amante era cabo ou soldado da polícia, encostado por

invalidez: perturbações mentais.

     Tem hora que parece que Deus abandonou a gente.

– Não precisa ficar nervoso, seu bobo – a mão melosa em minha perna trêmula.

     – Seu marido deve estar chegando a qualquer momento.

     – Não é meu marido. E hoje ele chega mais tarde.

     As garras no meu queixo, tentando me beijar à força. O cheiro e o gosto de vodca me deixavam tonto. A língua no meu pescoço, o joelho esfregando no meu colo.

     – Essa coisa não fica dura?

     Fechou as janelinhas do cubículo e arrancou as roupas às pressas. Muito feia, coitada.

     Me fechei, as mãos protegendo as partes ameaçadas. Fez pose de zangadinha:

     – Não me quer?

     – Não é bem isso.

     A chave na porta, graças a Deus. O amante chegando do bar, se arrastando pesado. A infiel correndo para o seu quarto, catando roupas íntimas pelo chão. Tranquei a porta por dentro e respirei fundo. Só consegui ouvir o grito, cadela, e o som do que deve ter sido um soco. Ou um chute no armário.

     Tomara que não tenha matado a pobrezinha.
 
 

 

 

 

terça-feira, 18 de julho de 2017


Para não perder a viagem

     Das nuvens densas e nebulosas do sono ele viu saltar o rosto vincado, afogado em rugas e no ódio. Levantou o braço na direção da parede, procurando o botão que alerta o enfermeiro, mas o gesto foi interrompido pela mão áspera e cabeluda, que o segurou pelo punho:

     – Não chame ninguém. Precisamos conversar a sós.

     A amizade com o homem que agora, diante do seu leito no hospital, o encarava com travo de bebida amarga, começara na infância, nos primeiros anos do ginasial, e prosseguira na juventude.

     O visitante inesperado estava irreconhecível, com a barba por fazer e os dentes maltratados. O enfermo amparou com os dedos a boca retorcida, comprimindo os lábios e disfarçando a baba:

     – Bom revê-lo, Ranulfo.

     – Mentira, Genésio. Eu sou a última pessoa que você esperava ou gostaria de rever.

     Os olhos de Genésio, nublados pela tristeza e o medo, procuraram a lembrança longínqua de uma rodovia que ligava a pequena cidade à capital do estado, os dois jovens amigos, cheios de esperanças no futuro, contavam os carros que passavam na direção contrária.

     Os olhos de Ranulfo, incendiados pela raiva, o faziam rever os cabelos soltos ao vento de uma louca paixão.

     – Helena morreu. Uma coisa ruim no fígado – disse Genésio.

     – Deus a tenha.

     – Então, sem mágoas, não é?

     Ranulfo não respondeu.

     Arrastou o banquinho que ficava num conto para perto do leito e se sentou, depois de empurrar com a mão todos os frascos e caixas que estavam em cima.

     – Meus remédios, Ranulfo. São os meus remédios... – o outro gemeu.

     – Você não vai mais precisar deles.

      Dividiram o primeiro quarto na pequena pensão, os primeiros pratos feitos no balcão de bar das vizinhanças, as tardes de domingo no estádio, torcendo pelo mesmo time. Ranulfo foi o primeiro a arrumar emprego no supermercado, no depósito, depois deu um jeito de levar o amigo.

     Dividiam a cerveja, o tira-gosto e a conta no final do expediente, quando gostavam de cantar em dupla “Entrei na Rua Augusta a cento e vinte por hora...” Também dividiam as saudades das famílias. Cada semana era um que escrevia, sempre dando notícias também do outro. Juntos compraram a primeira pistola, que deveria protegê-los dos vagabundos de cidade grande, na volta para a pensão, no meio da noite.

     Helena já trabalhava no supermercado, no caixa. Gostava de homens mais altos, por isto preferira Ranulfo. Genésio, mais baixo, caprichava nos saltos do mocassim cultivava costeletas fartas, que ela também admirava, e óculos escuros.

     – Seu amigo parece um artista de cinema, quando põe o raiban.

     Ranulfo sentia ciúmes. Mas ficava quieto.

     Genésio carregava um pente Flamengo no bolso da camisa Lacoste, para manter sempre em ordem as costeletas e os vastos cabelos pretos.

     No casamento, o quase irmão foi padrinho. Ficou na casa dos dois, ajeitando móveis, enquanto eles viajavam em lua-de-mel. Uma promoção no emprego encheu Ranulfo de responsabilidades, fazendo com que passasse a chegar em casa a cada dia mais tarde, trabalhando às vezes até sábado e domingo.

     O outro tinha mais tempo, menos compromisso. Acompanhava Helena às compras ou ao salão de beleza. Sensível, a ajudava até a escolher toalhas de mesa.

     A respiração carregada na nicotina ficava mais rouca e mais próxima. O enfermo amassava a ponta da fronha do travesseiro. O visitante meteu as unhas sujas no canudo que transporta o soro.

     Genésio molhava os lençóis:

     – Éramos tão jovens, inconseqüentes... Poxa, amigo, me perdoa.

     Ranulfo diz que tentou esquecer, para sempre, de Genésio e da adúltera. E por muitos anos conseguiu. Até o dia em que o fantasma voltou, dançando entre as nuvens densas e nebulosas do sono, o acordando para sempre.

     Voltou para matá-la, mas chegou tarde.

     Genésio viu quando ele arrancou da parede o botão que convoca o enfermeiro. Quando levantou e apagou a luz do quarto, a fresta mínima da janela revelando o brilho do ferro na mão. Conhecia aquela pistola e o seu poder de fogo, Ranulfo não ia perder a viagem.
 

 

 

quarta-feira, 21 de junho de 2017


Eu poderia ter evitado


     Não sei como foi que me descobriram naquele fim de mundo, entocado entre os xiquexiques, tatus pebas e preás, escondido na cabana de um tio lá pelos arredores do Gavião.

     Eu acabara de fazer um serviço difícil em Feira de Santana, dado cabo de um empresário que vivia cercado de seguranças, tudo polícia, e tirava uns dias para assentar a poeira e descansar os dedos. Pouco antes, fora um sujeito envolvido com a política, desafeto do prefeito, segundo disseram, “metido a comunista, inimigo da lei e da ordem”.

     Mil novecentos e oitenta e dois foi um ano complicado.

     O sujeito que me procurou e me descobriu durante o banho de tanque, no mesmo alagadiço onde na infância contraí ameba e esquistossomose, se apresentou como enviado de um grupo estrangeiro “com ramificações” no mundo todo.

     – Italianos – arrotou, como se fosse o emissário do Papa.

     Pensei em dizer “Grandes merdas!”, mas não disse nada. Aprendi, com a idade e a experiência, que quem diz tudo o que pensa às vezes não vive nem para desdizer, e que tem horas na vida que a sabedoria manda se fingir de doente só para ser visitado.

     Olhei o céu – fazia um sol de lascar! –, recolhi o suor com os dedos e despejei quase nos pés do mensageiro:

   

      – E é, rapaz?...

     Arranquei um talo de capim e comecei a chupar a cepa, sugando o líquido docinho. Outra mania que tenho desde menino.

     Vi pelo jeitão que o sujeito tinha de coçar o saco, cuspir no chão e pisar com a ponta dos pés nos espinhos, que melhor seria economizar nos desaforos.

     Banquei o santinho:

     – Italianos? Tudo boa gente, né?

     Sequer disse o seu nome, mas me entregou um pedaço de papel com um endereço, dizendo que eu tinha quarenta e oito horas para me apresentar em Salvador.

     – Roupas limpas, barba bem feita e documentos no bolso. São necessários para a emissão do passaporte.

     – Passaporte?!

     – O serviço é no estrangeiro, Zé do Dedo.

     O filho de uma égua sabia o meu nome. Mau sinal.

     Um amigo que tinha uma Kombi especializada em transporte de trabalhadores rurais me deu carona até a rodoviária de Feira, onde eu pegaria o ônibus da empresa Santana para Salvador. Tinha um radinho bem xumbrega, ao lado do volante, sintonizado numa emissora barulhenta de Riachão do Jacuípe. O locutor incentivava a turma a vender suas rocinhas e comprar casa na cidade, a usar sabonete, procurar emprego em banco, jogar na loteria, beber cerveja da Brahma.

      A cada cinco ou dez minutos ele anunciava uma música que ninguém conseguia entender o título, sempre alertando tratar-se de “sucesso retumbante no Sul do País”. Cada uma pior do que a outra. Um cantor fazia tremer o para-brisa com voz fininha, gritando “Cuida beeeemmm de miiiimmmm”.

     A cantora, de voz até bonita, gemia um negócio que pedia “Me faz pequeeeeena, asa moreeeeena...”.

    

      Um grupo, que parecia os cantores de puteiros da minha juventude, ficava repetindo “Você não sabe mamaaaarrrrr, você não sabe mamaaaaaarrr”. Eu ri e comentei que era engraçado, fazer uma música para alguém que não sabia mamar, e o meu amigo me corrigiu:

     – É não soube “me amar”, abestado!

     – Se eu fosse bom de pontaria como sou de ouvido, já teria morrido de fome.

     Rimos. Pulei da Kombi, tomando cuidado para não amassar a roupa nova, e fui comprar o bilhete para a capital.

     Parei mais uma vez para contemplar o belíssimo painel de Lênio Braga na parede da rodoviária, tomei um café, um conhaque, mijei e comprei o jornal A Tarde, para me acompanhar nos cento e poucos quilômetros. O caderno de esportes, meu preferido, tinha uma grande matéria sobre os preparativos da Seleção Brasileira de Futebol, que dali a alguns dias estaria embarcando para a Espanha, onde disputaria mais uma Copa do Mundo.  A disputa anterior, na Argentina, tinha sido uma cagada só, com a seleção do Peru abrindo as pernas para o dono da casa e empurrando o Brasil no caminho de volta, antes da hora.

     Mil novecentos e oitenta e dois foi um ano complicado. Mas mil novecentos e setenta e oito foi muito pior.

     Lembrei-me do meu filho dizendo “Um dia quero assistir a uma Copa do Mundo, pai, me leva, pai, meu sonho é ver o Brasil ser campeão”.

     A expectativa de jornalistas, jogadores, treinador e torcedores era que dessa vez a coisa fosse bem diferente, pois os espanhóis são muchachos porretas e a Espanha não é nenhuma republiqueta. Sempre quis conhecer a Espanha, desde a infância, quando tive dois amigos chamados Pepe e Constantino, donos da padaria da rua onde eu morava e que sempre me davam um pãozinho doce ou bolachas no fim do dia, depois que eu ajudava o pessoal a descarregar o caminhão de lenha.

     Comecei a imaginar que seria bacana se os homens do estrangeiro trocassem o local do serviço e me mandassem para lá, em vez de para a Itália.

 

     Mas não foi assim.

     Explicaram mais ou menos a empreitada, que entendi mais ou menos, porque o conterrâneo encarregado de transformar em baianês o linguajar daqueles homens parecia bastante avexado com a tarefa. Mas deu para ficar sabendo que eu iria a Roma, não teria tempo de pedir a benção ao Papa, de lá seguiria no dia seguinte para uma cidade chamada Turim – eu entendia “durim” e o intérprete também – e que, ali, seria recebido pelo cerimonial da máfia local.

     Aí pulei da cadeira:

     – Máfia?!

     Não sei por que, mas desde menino essa palavra me provoca arrepios.

     Disseram que eu podia relaxar, que máfia naqueles dias não tinha mais nada a ver com a máfia da minha infância. Usavam o título apenas para impor respeito.

     – Que nem coronel aqui. Ainda existe coronel, na política ou nas fazendas? Não. Mas ainda se usa o título, para não perder a tradição.

     – Tutti buona gente! – disse o carcamano, bigode amarelo de nicotina e uma flâmula do Vitória em cima da mesa de trabalho.

     Não gostei. Sou Bahia. Mas primeiro a obrigação e depois a devoção. Peguei passagens e papelada, até o passaporte que, sabe-se lá como, ficou pronto em vinte minutos. Entregaram-me uma sacola cheia de dinheiro e me mandei para o Aeroporto Dois de Julho.

     No caminho, o intermediário finalmente me falou qual o serviço:

     – Coisa de cinema, Zé do Dedo! É um jogador de futebol de fama internacional. Tu vai virar destaque no mundo do crime, vai pros livros e enciclopédias. Tá rebocado!

     – Que jogador é esse, homem?

     – Vem a ser um tal de Paulo Rossi, pronuncia-se “Paolo”, que joga em Turim, no maior time de lá, o Juventus ou a Juventus,  cada um lá diz de um jeito. É só o que eu sei, Zé. Lá eles te explicam direito.

     – E qual é a bronca contra esse jogador?

     – Não faça muitas perguntas, cabra. A máfia não gosta de nego curioso.

     Aparelho de ouvir enfiado nos ouvidos, eu comecei a acompanhar no avião um filme que me levou novamente de volta à infância, ao Cine Íris, quando minha irmã me carregou para ver Candelabro italiano.  Senti uma puta vontade de chorar, sei lá por que, e me lembrei de Rita Pavone cantando Mio cuore, tu stai soffrendo, cosa posso fare per ter?

     Troço bonito. E tão fácil de entender o significado, que até eu entendia. Depois, ao redor do poste – à luz de todos os nossos sonhos –, traduzia para os amigos e fazia um sucesso medonho”.

     O sujeito de terno, gravata e tira de pano grosso enrolado em volta do pescoço, que me recebeu no Aeroporto de Roma, me chamou de Giuseppe Dedon e falou em criminalità, o que me incomodou. Pedi que me levasse logo ao hotel, pois estava cansado feito um corno.

     – Corno se cansa muito? – perguntou, e eu vi que o almofadinha falava a minha língua, estava só debochando de mim.

     Dia seguinte, partimos de carro para Turim. Ele perguntou se eu sabia manejar arma com silencioso, e eu disse que entendia mais de revólveres do que eles de macarrão. Não sorriu. Também não fez cara feia. Recebi credenciais para assistir ao treino dos jogadores, bem posicionado em local de onde teria visão privilegiada do campo e de um caminho de fuga garantida.

     Algumas vezes coloquei na mira perfeita a cabeça do atacante.

     Repeti a visita mais duas ou três vezes, pedindo ao emissário da máfia que tivesse paciência.

     – Você é que sabe a hora certa de apertar o gatilho – ele disse.

     São finíssimos.

     Uma hora lá ousei perguntar o que aconteceria se eu desistisse de fazer o serviço, movido por questões religiosas – afinal, estava tão perto do Vaticano – ou tomado de simpatia pela quase vítima.

     – Essa possibilidade não existe. Do ponto a que você chegou, não tem volta.

     Pois foi o que aconteceu: contrariando a todos os princípios do meu ofício, me tomei de simpatia pelo jogador, um cracaço a quem os mafiosos queriam ver pelas costas. Esqueci a tarefa e passei a comparecer aos treinos para aplaudir os seus dribles, deslocamentos em diagonal, chutes cheios de manha e efeito.

     O jeito que encontrei foi deixar a Itália, fugido, no dia exato em que a imprensa local noticiava a viagem da  Azurra para a campanha na Copa do Mundo daquele ano. Paolo Rossi era um dos ídolos da equipe e da torcida. Atravessando fronteiras, cheguei à Espanha e, não perguntem como – aprendi com a máfia a guardar certos segredos –, no primeiro fim de semana de julho, eu estava na cidade de Barcelona, assistindo ao espetáculo que ficou conhecido com “A tragédia de Sarriá”, vendo exatamente o cidadão de nome Paolo Rossi acabar com o sonho do meu filho.

      E pensar que eu poderia ter evitado.
(Do livro "Contos da vida absurda", Editora Casarão do Verbo, 2014)