quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

 

Os caçadores e a caça (Um conto de Natal)

 

     Na volta da escola, caminhando às margens da belíssima lagoa que ilumina e transluz no crepúsculo, o menino vê o homem passar correndo.

     Apenas mais um personagem sozinho no palco, ensaiando o corre-corre da cidade?  

     Seria um atleta profissional, desses que rodam o mundo inteiro em intermináveis maratonas? Ou apenas um corredor de fim de semana, que meia hora depois está todo suado, enchendo a barriga de cerveja ou de água de coco?

     Os pensamentos do menino são atropelados pelo tropel de outros corredores, que vêm correndo atrás do homem.

     Esses parecem bem enfurecidos.

     Agora, o homem parece que foge. E apressa o passo, pois está visivelmente amedrontado.

     Dispara na frente. Não olha para trás. Nem para os lados. E já começa a demonstrar algum cansaço.

     Mantém a cabeça solta no espaço, os pés presos no chão.

     A multidão, enfurecida, grita "Pega ladrão”! Repete: “Pega ladrão”! Agita-se: “Pega ladrão”!

     O menino tenta diminuir o pavor que sente, imaginando que é um filme o que se passa. Um homem a correr sozinho. Muitos caçadores e apenas uma caça.

     Há tanta gente no caminho, cada um vivendo a cena única do seu próprio mundo. Ninguém se dá conta da mais que humana ameaça (quem se preocupa com os que estão ou com os que passam?).

     Quem vai se incomodar com um maluco a correr sem companhia? Com a multidão a gritar enlouquecida? Com uma tarde que, igual a tantas, simplesmente se esvai?

     Só o olho do menino parece ver: os pássaros que buscam o ninho. O sol a se esconder, devagarinho.

     O homem tropeça nas pedras do caminho e cai nas garras dos predadores de garras afiadas. Que prendem o seu pescoço com um laço. E o arrasta pelas ruas.

     Eis o fato consumado, a verdade nua e crua, quando alguém arranca de seu bolso o fruto do roubo roubado: um pedaço de pão bem amassado.

     Nos olhos do menino, dança o olhar do homem.

     Nos olhos da multidão, nunca se viu tanta euforia. É um pássaro? Um avião? Um atleta campeão? É o mais que disputado troféu, agora de braços e pernas abertos, espetado em cruzes imaginárias.

     O homem olha para o céu, desalentado.

     E se pergunta se fora mesmo abandonado.

     O corpo é carregado num desfile de gritos e de luzes.

     Ao fundo, no espelho da linda lagoa que reina indiferente no cenário, o menino vê a imensa árvore que começa a se iluminar.

     Cheia de bolas vermelhas, que parecem sangue.

     A cor da roupa vermelha do Papai Noel.

     E lembra-se que a tarde já é bem tarde, que daqui a pouco é noite. Que precisará estar em casa, com a família, em volta da mesa, comendo rabanada e recebendo presentes.

     Afinal de contas, é Natal.



 

 

 

 

 

segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

 

Caminhos

 1.

     Diante da banca de jornais e revistas, o homem parece petrificado, os olhos grudados na primeira página do jornal que estampa a manchete MARADONA ESTÁ MORTO. Em seguida começa a chorar, a soluçar, a espernear, a arrancar as roupas e a se mutilar, a bater com a cabeça nas pedras da calçada, gritar Meu Deus, Meu Deus, Meu Deus!, o sangue jorrando da testa e escorrendo pelo corpo, manchando a calçada, empoçando no meio-fio, sujando os pés dos passantes. O moço que sai da agência bancária diz Deve ser ataque epilético. É maluquice mesmo, diz o que conserta relógios na esquina. Isso é Covid dezenove, garante a mulher que passa com as compras. Irado, vibra o menino. Leu a manchete sobre o Maradona e ficou assim, o dono da banca explica ao freguês. Ele deve ser argentino, conclui o freguês, comprando o livro de palavras cruzadas e seguindo o seu caminho.

 

2.

     O homem entra no supermercado com a mulher e uma cesta para colocar os produtos. Sai conduzido por dois seguranças, que o levam até o estacionamento, depois de um bate-boca com a funcionária do caixa por motivo alheio à vontade dos dois que estavam apenas até aqui de problemas e loucos para mandar alguém à puta que o pariu. Ali o espancam até a morte, não sem antes arrebentarem boca, dentes, nariz, olhos, cabeça, braços e pernas, tomando o cuidado para não emporcalhar as botas com o sangue, pois precisarão retornar ao interior da loja, se reapresentar ao gerente de segurança e dar continuidade à tarefa de segurar o que for preciso. Os dois que bateram até matar são brancos e o que apanhou até morrer era preto, mas os donos do supermercado dizem que isso não importa, pois o que importa mesmo é que eles não são funcionários, e sim terceirizados, e a partir de agora vão selecionar melhor os colaboradores para evitar incidentes dessa natureza. Estão consternados, constrangidos e solidários com a família enlutada, embora não façam a menor ideia de quem se trata. O homem que cruza o estacionamento do supermercado naquele momento quer saber o que está acontecendo, e uma funcionária do setor de apoio logístico que acompanha a tudo diz Não é da sua conta e nem ouse filmar nada aqui, pois vamos quebrar a sua cara. O menino que ajuda a mãe a empurrar o carrinho de compras até o carro pergunta o que é aquilo. Ela diz que não interessa, não tem importância, entram no carro e pegam o caminho de casa.

3.

     O rapaz trafega em sua moto quando a viatura com três policiais emparelha e ordenam que ele encoste. O rapaz não pode encostar no acostamento que não existe e quando se dá conta já é a viatura atravessada na frente, ele fazendo um esforço enorme para estancar a tempo, pois amassar o carrinho azul e branco com giroflex e sirene ligados é a pior coisa que pode acontecer num de dia tantos acontecimentos ruins. Não dá tempo de pensar nem isto nem aquilo nem nada, pois os fardados já estão de armas em punho e fúria nos olhos, Não parou por quê, seu merda?, Tem o quê aí? Passa tudo pra cá, abre os bolsos, a mochila das costas, o baú da moto, desce agora e ajoelha no asfalto! O rapaz ainda gagueja Tô limpo, senhor, mas o “senhor” sai mastigado e amassado pela coronha do revólver, acompanhando o chute certeiro na boca do estômago. O rapaz não se lembra mais de nada, nunca mais vai lembrar, sequer ficou sabendo que jogaram gasolina e tacaram foto na motoca que ele chamava de “parceira” e nem acabara de pagar. O entregador de gelo que passa por ali todos os dias fica horas diante da cena, tentando entender o que é ferro e borracha de moto, o que são restos humanos. Mas desiste de tentar descobrir e retoma o caminho do trabalho.

 

4.

     O corpo está estendido no chão de cerâmica fria da padaria, no bairro mais chic da grande cidade, entre mesas e cadeiras com gente que toma café da manhã para alimentar o corpo, relaxar o espírito ou curar a ressaca. O dono da banca de jornal em frente à padaria diz que o homem vivia nas ruas do bairro e entrou na padaria não para comprar pão, mas para pedir socorro, tossindo, escarrando e se acabando de vomitar sangue, clamando, gritando por socorro, para que alguém chamasse uma ambulância. Nem ambulância nem socorro nem médicos nem bombeiros nem padre ou pastor, foi chamado apenas um funcionário que cuidava da limpeza no fundo da loja para jogar uma lona preta em cima do corpo, pois é assim que se faz, tão logo o homem parou de gritar e espernear e pedir socorro, caindo morto – feito um passarinho abatido. O rabecão veio horas depois e a família foi localizada, em bairro pequeno da periferia da grande cidade. A mãe disse que o morto quando vivo chamava-se Carlos Eduardo, Carlinhos para ela, que ele vivia nas ruas porque gostava, pois a casa da mãe era modesta, mas estava de portas abertas para recebê-lo, sendo que de vez em quando ele até passava uns dias com ela, que nesses dias ela aproveitava para dar banho e colocar roupas limpas nele, depois de ensopá-lo de desodorante Nívea e de Seiva de Alfazema, pentear os seus cabelos, aparar a barba, dar café com bolo e cuscuz, antes de o filho dar a costumeira meia-volta e dizer “Valeu, minha mãe, mas agora eu vou novamente, me deixe ir, não posso ficar aqui preso, sou passarinho, vou pro mundo, sou do mundo, meu caminho não passa mais por aqui”.

 

5.

     A moça sai de casa à tardinha para comprar pão fresco na esquina, deixando o filho pequeno no colo da avó que assiste televisão com a janela aberta, pois o calor é insuportável. De dentro da padaria a moça escuta disparos que parecem próximos, deixa o troco no caixa e o saco de pães no balcão e corre até a calçada para ver o que acontece. Vê passar correndo o homem suado, trajando camisa de time e segurando uma arma, seguido do policial que também segura uma armas e também corre, suando mais do que o homem porque carrega uma barriga que balança quando ele corre. A moça trata de resgatar compra e dinheiro e correr para casa antes que perseguido e perseguidor retornem atirando. Antes mesmo de empurrar a porta de casa, olha pela janela e vê que a mãe dela está sentada na mesma posição de quando saiu, no sofá, diante da televisão, com o neto no colo, só que agora tem um buraco escuro na testa, de onde escorre sangue também escuro, jorrando pela cabeça e o peito do menino que continua com os olhos vidrados no filme cheio de borboletas, folhas, canções da Sessão da Tarde e um lindo caminho verde no meio de uma floresta.

 

6.

     Por nunca ter visto um coveiro chorando, o repórter do jornal popular que cobria o enterro das meninas se aproximou dele com gravador em punho, antes mesmo de ouvir a família enlutada. O homem disse ao repórter que estava ali em dupla função, como encarregado de sepultar os corpos das primas Rebecca e Emilly, de sete e cinco anos, e também na qualidade de amigo do pai de uma delas, que faria cinco anos daí a três dias e cujo corpinho desceu à cova com a roupa de Moana, princesa da Disney que seria tema de sua primeira festinha de aniversário. Ele não sabe quem é Moana, mas testemunhou o quanto a menina estava linda e chorou feito um bebê, juntamente com os parentes dela e de Rebecca, a priminha de sete anos com quem ela brincava de pique-esconde na porta da casa da família. Também contou ao repórter que além de amigo era vizinho dos pais de Emilly e que chegava do trabalho por volta de oito e meia da noite, depois da jornada no cemitério parava no bar da esquina para tomar uma cachacinha, ninguém é de ferro. Disse que infelizmente vira tudo tudinho, bem do jeito que se deu, com a rua cheia de crianças brincando nas portas e pais chegando do serviço. Tinha uma viatura Blazer da PM parada em frente à rua e, sabe-se lá porque diabos, fizeram uns dez disparos de fuzil. Que quando os policiais foram embora ele atravessou e viu a menina Emilly atingida na cabeça, já sem vida, uma cena que não deseja a ninguém que veja. Depois outra vizinha veio gritando e dizendo que tinham matado a Rebecca também. A revolta era maior, segundo ele, por saber que a família procurou o batalhão ao qual os policiais pertenciam, saindo de lá com o pedido de desculpas e a informação de que havia naquele momento intensa troca de tiros entre a lei e a desordem, que a intenção não era acertar inocente, mas bandidos ferozes, e que essas tragédias infelizmente acontecem porque quem está no fogo é para se queimar, e nunca se sabe ao certo de onde vêm as balas, os sustos, muito menos quem coloca as pedras no caminho.

(Publicado na antologia "Tempus fugit", 25 autores, Bloco Narravito, 2021)


 

terça-feira, 9 de novembro de 2021

 

Mãos dadas

      Eu tinha verdadeira adoração por ela. Um dia perguntou se eu não sentia vergonha pelo fato de ela ser puta. Eu disse você é feliz assim e isto me faz feliz, ou uma besteira dessas. Na verdade, não me incomodava nem um pouco, estava mesmo era me lixando pros seus draminhas. Ela fingiu acreditar e abriu o quebra-vento, depois balançou o cabelo prum lado e pro outro, como gostava de fazer quando saíamos de carro.

– Mas você tem vergonha de sair de mãos dadas comigo – ela disse.

– Claro que não – respondi.

– Então por que não passeia de mãos dadas comigo por aí?

     Comcei a ficar puto com aquele papo, sempre fico puto com esses papos, mas procurei não demonstrar:

– Sabe o que é? Acho a maior besteira andar por aí de mãos dadas ou de

braços dados. Não ando assim com ninguém, acho que nem sei andar desse jeito, não acerto o passo.

– Nem com a sua mulher você andava?

– Não.

     Eu disse que tinha verdadeira adoração por ela, mas que detestava aquela conversa. Sempre gostei muito de putas, mas detesto conversa de putas. Ou bebem demais e ficam escrachadas, abrindo as pernas fora de hora e dizendo palavrão, ou ficam com essa mania de mulherzinha, querendo andar de mãos dadas e de braços dados, fazer compras com a gente no shopping.

     Ela pegou uma escova enorme na bolsa e começou a ajeitar os cabelos, desarrumados pelo vento. Tinha cabelos bonitos, putas geralmente têm cabelos bonitos porque cuidam bem deles. Depois pegou o batom e começou a avermelhar os lábios.

– E à missa? Você iria à missa comigo? – perguntou.

– Claro que iria.

– Mentiroso.

– Não me chama de mentiroso. Vou à missa com você qualquer dia desses,

você pode até apostar.

– Qualquer dia desses, não. Vamos hoje – e tentou me beijar daquele jeito

que parecia beijo de cachorro, a língua para cima e para baixo, uma luva úmida no meu pescoço.

– Pára.

– Tá vendo? Além de vergonha, tem nojo de mim.

     Eu disse que não tinha nojo coisa nenhuma. Ela insistiu que eu tinha nojo dela, por isso não gostava de beijo na boca nem de lambida no pescoço.

– Já disse que não tenho nojo de você, porra! – rosnei, batendo com a mão

espalmada no painel do carro.

     Ela se assustou, me olhou até com medo, mas mesmo assim voltou ao lengalenga. Puta é foda mesmo:

– Então passeia de mãos dadas, me leva à missa, ao cinema, ao restaurante,

me dá um beijo de novela.

– Não vejo novela.

– Então me dá um beijo de cinema.

Eu disse não enche o saco e ela berrou não fala assim comigo, seu cavalo.

Perdi de vez paciência, meti o cotovelo nos peitos dela e gritei cala a boca agora, sua puta escrota. Ela disse cala a boca é o cacete e blasfemou que puta era minha mãe. Porra, logo minha mãe, a vaca não sabia mesmo com quem estava se metendo. Se tem uma coisa que não admito é que falem de minha mãe, desde pequeno, quando quebrei a cara de um colega de escola. O merdinha falou que minha mãe ficava na zona enquanto eu dormia.

     Segurei o volante do carro com uma mão e com a outra dei uma bofetada certeira. Ela chorou, xingou e gritou olha para a frente, seu débil mental. E quando olhei para a frente já estava enfiando o carro em cima do poste.

     Não foi por querer que direcionei para o poste o lado do carona. Não foi por cafajestada que salvei a minha pele e acabei com a vida da única mulher que talvez tenha amado na vida. Eu tinha, mesmo, verdadeira adoração por ela. Juro que se ainda desse tempo eu iria de mãos dadas com ela até para o inferno.

(Do livro "Grande homem mais ou menos", Editora Bertrand Brasil, 2007)



 

 

segunda-feira, 18 de outubro de 2021

 

A música

      – Tem horas que a vida é que nem aquela música – ele disse, pegando a xícara e a garrafa térmica.

     – Que música? – Ela perguntou, picando cebola e esfregando o olho com as costas da mão.

     – Aquela da tarde e do viaduto. Um dia cai tudo mesmo em cima da gente. Geralmente, quando a gente pensa que as coisas estão nos conformes.

     Ela não disse nada. Começou a lavar o pimentão.

     – Está fazendo uma salada? – ele perguntou.

     – Refogado para a carne moída – ela disse.

     Ele pingou adoçante no cafezinho, bebeu e foi até a área de serviço. Olhou pelo basculante.

     – Parece que vai chover.

     – É. Está previsto.

     Voltou para a cozinha e botou a xícara na pia.

     – Por que você falou aquilo? – ela perguntou.

     – Aquilo, o quê?

     – Da música que diz que cai a tarde feito um viaduto.

     – Cai, não. Caía.

     – Isso. Caía a tarde...

     – Porque é assim que estou me sentindo, como se um viaduto de aço e concreto tivesse desabado sobre a minha cabeça.

     – É por causa de ontem? Você vai arrumar outro emprego logo.

     – Sei não.

     – Vai. Você é um profissional conhecido e respeitado.

     – É pouco.

     – Meu Deus! Onde já se viu? O que é que conta mais do que isso, criatura?

     – A idade. Estou começando a ficar fora do perfil desejado.

     – Perfil uma ova! – ela disse, misturando os temperos ao óleo e ao caldo de legumes, mexendo com a colher de pau. – Você é bom, meu amor. E isso é o que importa.

     – Quem é bom não perde emprego.

     – Como não? Você não disse que pediram a vaga para um protegido do diretor? Então?! Você não perdeu, tomaram. Essa lei não é de mercado, é de mercadorias.

     O telefone tocou e ele foi atender. Quando voltou, ela misturava a carne moída ao refogado.

     – Era da empresa. Deram-me a lista de documentos para a rescisão.

     – O que esse rapaz que entrou em seu lugar sabe fazer?

     – Nada. Era meu estagiário até ontem. Estava começando a aprender. Um garoto, podia ser meu filho.

     – Não é um caso isolado – ela disse, provando a comida.

     – Eu sei.

     – Acontece a toda hora.

     – Eu sei.

     – Nas melhores empresas.

     – Pois é.

     Ele perguntou se ela queria ajuda para pôr a mesa. Ela disse que ele poderia abrir um vinho. Ele disse que não tinha motivos para brindar.

     – Brindemos à falta de motivos – ela respondeu.

     E riu.

     Ele não riu.

     – Não conta para o Júnior não, tá? – ele pediu, durante o jantar.

     – Por que? O nosso filho conhece a vida, sabe como é que a banda toca.

     – Prefiro. Conto quando arrumar outro emprego. Digo que  fiz uma troca.

     – Você que sabe – ela disse, enchendo os copos.

     Ele começou a servir a massa e a carne moída:

     – E o Júnior, não vem jantar?

     – Disse que chegaria tarde. Tinha um chope com uns amigos.

     Ela levantou-se e foi até o aparelho de som.

     – Vou colocar uma música.

     – A que fala da tarde e do viaduto?

     – Não. Uma que diz que amanhã será outro dia.

     Ela sorriu novamente.

     Eles brindaram.

     O Júnior chegou.

     – Oi, pai. Oi, mãe. Já jantaram?

     – Acabamos neste momento. Ainda está tudo quente – disse a mãe.

     – Foi bom o chope? – perguntou o pai.

     – Foi. Comemoramos a promoção de um amigo. Era estagiário, virou chefe. Lá na empresa que você trabalha.

     Ela pegou as xícaras para o café. Ele preferiu um conhaque. Na cabeça, o verso e a melodia martelavam: “Um bêbado trajando luto...”

(Do livro "Aquela música", Editora Myrrha, 2016)



 

 

domingo, 10 de outubro de 2021

 

O último post

 

     Eu poderia ter resolvido o assunto no tuíter, com menos de cem caracteres, algo como Quando vocês acabarem de ler isto aqui, eu terei acabado com tudo, mas ficaria faltando alguma coisa.

     Terei acabado com tudo. “Tudo” o quê?!

     Escrever é tão difícil quanto viver.

     No momento exato em que redijo esse post de despedida é dia trinta e um de dezembro de dois mil e vinte, quase meia-noite, e sou um dos sobreviventes recém-nascidos depois de nove meses no útero escuro de um confinamento forçado.

     (Isso ficou bom.)

     Último dia do ano e não há fogos na praia nem em volta da lagoa. O bilhete de despedida que a companheira deixou está em cima da mesa, me olhando com cara de sacana. A garrafa de vodca dá os últimos suspiros e Ivete Sangalo grita na televisão que “Vai rolar a festa, vai rolar”!

     Que festa, abestada?!

     Pego a porra do bilhete, já manchado de álcool, cinza e café, e leio pela milésima vez a frase intrigante:

     Eu vou em busca da felicidade, escritor!

     Sinto uma ponta de ironia desmoralizante nesse “escritor”. A que bosta de felicidade ela se refere? Como sair à procura da felicidade, com uma máscara de pano atravessada na cara e um vidro de álcool em gel na mão? E se ao invés de encontrar o infeliz que a tirou de mim, prometendo dias melhores, ela for encontrada pelo vírus do mal que continua por aí, à espreita?

     Dias melhores. A inocência comove.

     A faca amolada esteve ali na cozinha, o tempo inteiro, mas a ingrata esperou justo o último dia do ano para usar em minhas costas (se tivesse tempo para reescrever esta mensagem, eu mexeria nessa frase; ela está muito piegas. E “ingrata” eu não leio, nem ouço, desde as canções do Waldick Soriano).

     O celular faz um barulho esquisito e me dou conta de que deixei a moça do telessexo falando sozinha; que a ligação já dura algumas horas e vai custar uma fortuna; e que ninguém vai pagar por ela, porque quando a conta chegar eu já terei partido.

     Encosto o aparelho no ouvido no momento exato em que a voz suave e derretida está dizendo que quer me ver ao vivo, “peladão, com esse pinto enorme” (segurei o riso nessa hora) e que espera que eu possa leva-la “à loucura”.

     Então me lembro do velho amigo jornalista, bêbado na mesa do restaurante, declarando-se para a colega de trabalho:       

     “Se você gostar de pau mole, prometo leva-la à loucura”.

     Gargalhadas gerais. A moça cobrindo o rosto com as palmas das mãos (dedos abertos para acompanhar a cena). O garçom e amigo se equilibrando com a bandeja pelo corredor, contendo o riso para não entornar os chopes. O universo reconstruindo-se “sem ideal nem esperança”, porque embora faltasse Fernando Pessoa na mesa, era um tempo em que havia poesia em tudo.

     Até no pau mole.

     Prometi não pensar mais no assunto, mas o pensamento fica espetando a raiz do chifre: onde minha mulher conheceu o infeliz que a levou ao encontro da tal felicidade? Como eu, ela também ficou esses meses todos confinada. Aparentemente, a troca de mensagens durante a madrugada era com amigos próximos e alguns parentes.

     Taí o argumento que me faltava: o conto da mulher que conhece o amante na internet, enquanto o marido vê futebol, fala mal do presidente e se debate para escrever histórias em meio ao caos. Esse eu ainda não escrevi, embora outros já o tenham escrito. Só que, no meu caso, seria baseado em fatos reais.

     Mas agora não há mais tempo. Busquem na obra de outro. Por aí está cheio de escritor que, como eu, deita falação só sobre o que deu errado. Vou refletindo sobre o tema e esbarrando na pia e no fogão, enquanto ponho uma banda de pão puro para esquentar.

     “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

     Por conta dessa mania besta com a literatura, a paixão por Machado de Assis e pelo seu Brás Cubas, não fui pai nem tenho mais disposição (vamos chamar assim) para ser. Portanto, nenhum rebento a quem possa estar implorando por uma visita, nesta hora dura, e ouvindo dele a desculpa esfarrapada, porém perfeita e oportuna, de que não vem me visitar por recomendação científica.

     É que sou “grupo de risco”.

     Grupo de risco somos todos nós, baby, do nascimento ao último suspiro.

     Mas o post de despedida está tomando um caminho que eu não queria, por isso volto à moça do telessexo e à última dose da vodca que me espera, feminina e generosa como só as garrafas sabem ser.

     “Fale alguma coisa”, diz a voz melosa do outro lado.

     “Estou triste e bêbado”.

     “Como você está vestido? Só de cuequinha? Hummmmm”, insiste.

     “De pijama”.

     “Estou nuinha... O que você sente, ouvindo minha voz?”

     “Cheiro de queimado! É a porra do pão...”

     Corro à cozinha e, quando volto ao telefone, escuto só o barulhinho de ligação interrompida.

     Se nem a moça do telessexo me aguenta, eu é que não vou tentar.

     Desisto. Sei que amanhã não estarei mais aqui.

     E se estiver, estou perdido, porque a conta do telefone será impagável.

(Publicado na antologia "Amores confinados", Bloco Narrativo, 2021)




    

 

quarta-feira, 19 de maio de 2021

 

Mania de outono

 

Surge a alvorada, folhas a voar

 E o inverno do meu tempo começa a brotar, a minar.

Cartola

       Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio.

     A mania de outono eu tenho desde muito cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno, que trazia frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.

     Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às boas ou más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas, se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando, montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhavam tudo de um amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.

     Peguei mania e comecei a colecionar folhas caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas meio marrom amareladas disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco, no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do próximo outono.

     Por que o declínio e a decadência? De onde tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento. Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final, disse “vá dormir, você está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.

     Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo, me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.

     Catei folhas na volta da escola, na ida para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles descuidam, apanho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.

     Declínio e decadência. O segurança chuta para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante, bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha.

(Do livro "Contos da vida absurda". Editora Casarão do Verbo, 2014)



sexta-feira, 14 de maio de 2021

 

O último post

      Eu poderia ter resolvido o assunto no tuíter, com menos de cem caracteres, algo como Quando vocês acabarem de ler isto aqui, eu terei acabado com tudo, mas ficaria faltando alguma coisa.

     Terei acabado com tudo. “Tudo” o quê?!

     Escrever é tão difícil quanto viver.

     No momento exato em que redijo esse post de despedida é dia trinta e um de dezembro de dois mil e vinte, quase meia-noite, e sou um dos sobreviventes recém-nascidos depois de nove meses no útero escuro de um confinamento forçado.

     (Isso ficou bom.)

     Último dia do ano e não há fogos na praia nem em volta da lagoa. O bilhete de despedida que a companheira deixou está em cima da mesa, me olhando com cara de sacana. A garrafa de vodca dá os últimos suspiros e Ivete Sangalo grita na televisão que “Vai rolar a festa, vai rolar”!

     Que festa, abestada?!

     Pego a porra do bilhete, já manchado de álcool, cinza e café, e leio pela milésima vez a frase intrigante:

     Eu vou em busca da felicidade, escritor!

     Sinto uma ponta de ironia desmoralizante nesse “escritor”. A que bosta de felicidade ela se refere? Como sair à procura da felicidade, com uma máscara de pano atravessada na cara e um vidro de álcool em gel na mão? E se ao invés de encontrar o infeliz que a tirou de mim, prometendo dias melhores, ela for encontrada pelo vírus do mal que continua por aí, à espreita?

     Dias melhores. A inocência comove.

     A faca amolada esteve ali na cozinha, o tempo inteiro, mas a ingrata esperou justo o último dia do ano para usar em minhas costas (se tivesse tempo para reescrever esta mensagem, eu mexeria nessa frase; ela está muito piegas. E “ingrata” eu não leio, nem ouço, desde as canções do Waldick Soriano).

     O celular faz um barulho esquisito e me dou conta de que deixei a moça do Tele Sexo falando sozinha; que a ligação já dura algumas horas e vai custar uma fortuna; e que ninguém vai pagar por ela, porque quando a conta chegar eu já terei partido.

     Encosto o aparelho no ouvido no momento exato em que a voz suave e derretida está dizendo que quer me ver ao vivo, “peladão, com esse pinto enorme” (segurei o riso nessa hora) e que espera que eu possa leva-la “à loucura”.

     Então me lembro do velho amigo jornalista, bêbado na mesa do Restaurante, declarando-se para a colega de trabalho:       

     “Se você gostar de pau mole, prometo leva-la à loucura”.

     Gargalhadas gerais. A moça cobrindo o rosto com as palmas das mãos (dedos abertos para acompanhar a cena). O garçom e amigo se equilibrando com a bandeja pelo corredor, contendo o riso para não entornar os chopes. O universo reconstruindo-se “sem ideal nem esperança”, porque embora faltasse Fernando Pessoa na mesa, era um tempo em que havia poesia em tudo.

     Até no pau mole.

     Prometi não pensar mais no assunto, mas o pensamento fica espetando a raiz do chifre: onde minha mulher conheceu o infeliz que a levou ao encontro da tal felicidade? Como eu, ela também ficou esses meses todos confinada. Aparentemente, a troca de mensagens durante a madrugada era com amigos próximos e alguns parentes.

     Taí o argumento que me faltava: o conto da mulher que conhece o amante na internet, enquanto o marido vê futebol, fala mal do presidente e se debate para escrever histórias em meio ao caos. Esse eu ainda não escrevi, embora outros já o tenham escrito. Só que, no meu caso, seria baseado em fatos reais.

     Mas agora não há mais tempo. Busquem na obra de outro. Por aí está cheio de escritor que, como eu, deita falação só sobre o que deu errado. Vou refletindo sobre o tema e esbarrando na pia e no fogão, enquanto ponho uma banda de pão puro para esquentar.

     “Não tive filhos, não transmiti a nenhuma criatura o legado de nossa miséria”.

     Por conta dessa mania besta com a literatura, a paixão por Machado de Assis e pelo seu Brás Cubas, não fui pai nem tenho mais disposição (vamos chamar assim) para ser. Portanto, nenhum rebento a quem possa estar implorando por uma visita, nesta hora dura, e ouvindo dele a desculpa esfarrapada, porém perfeita e oportuna, de que não vem me visitar por recomendação científica.

     É que sou “grupo de risco”.

     Grupo de risco somos todos nós, baby, do nascimento ao último suspiro.

     Mas o post de despedida está tomando um caminho que eu não queria, por isso volto à moça do Tele Sexo e à última dose da vodca que me espera, feminina e generosa como só as garrafas sabem ser.

     “Fale alguma coisa”, diz a voz melosa do outro lado.

     “Estou triste e bêbado”.

     “Como você está vestido? Só de cuequinha? Hummmmm”, insiste.

     “De pijama”.

     “Estou nuinha... O que você sente, ouvindo minha voz?”

     “Cheiro de queimado! É a porra do pão...”

     Corro à cozinha e, quando volto ao telefone, escuto só o barulhinho de ligação interrompida.

     Se nem a moça do Tele Sexo me aguenta, eu é que não vou tentar.

     Desisto. Sei que amanhã não estarei mais aqui.

     E se estiver, estou perdido, porque a conta do telefone será impagável.

(Publicado na antologia "Amores confinados", Editora Bloco Narrativo, 2021)



    

segunda-feira, 3 de maio de 2021

 

O MAIS BELO PÔR DO SOL

Depois de dar uma banana para o motorista que buzinava e xingava e mordia o painel do carro, que freara a poucos passos do seu corpo magro, ele olhou para cima e atravessou a avenida em dominó, atingindo o calçadão reticulado e mergulhando os pés descalços na areia quente.

A mochila no ombro.

E ali, diante do mar, um olho nas ondas e outro no voo oblíquo da gaivota, sorrindo ao céu e à cadência da moça que mergulhava das pedras, exibindo no dorso o mais belo pôr do sol, acomodou os ossos entre o menino que jogava rescobol e o vendedor que espalhava picolés baratos e mate com limão geladinho.

E assim abriu a mochila aninhada sobre as pernas rútilas de varizes cinza, coçou a sola de um pé com a unha do outro e abraçou com as duas mãos o sanduíche de mortadela. A primeira mordida no momento exato em que a moça retornava, as gotas de água pingando dos bicos dos dois irmãos sobre o seu sanduíche. Os olhos acesos no brilho do mais lindo pôr do sol só conseguiram gaguejar:

– Quer um pedaço?

– Quero – ela disse.

Era quase noite, o dia morria ali por trás da Pedra da Gávea.

 

HERANÇA

No princípio era o verbo, doar-se absoluto, o eterno enigma, fazer e desfazer e refazer as criaturas.

No princípio o amor, os cães sem dono, a terra tida e prometida de silêncios e quereres acreditar em todas as coisas.

Então, o filho foi levado ao alto mais alto do monte e ouviu do pai, ouro nos dentes, a profecia infame e infamante

– Um dia, tudo isto será teu!

 

LUA

Eu disse coisas como é para o seu bem, você vai ficar boa, meu amor. Eu tinha faíscas nos olhos. Eu tinha fiapo nos dentes quando disse eles vão tratar muito bem de você, acompanhe os rapazes, não seja malcriada que não lhe farão nenhuma ruindade.

Eu repeti acredite em mim, meu filho, sua mãe precisava se tratar, ela estava mal, muito mal, você era pequeno, não entendia o que se passava. Ele perguntou está vendo aquela lua no céu, meu pai?, e gritou você vai me pagar muito caro.

Eu sei que fiz o que pude, o melhor que pude, por ela e por ele, por todos eles, mas a ingratidão é moeda fácil na face da terra, por isso não carrego culpas comigo e viveria duzentos anos não fosse essa luz intensa que jamais se apaga, eterna noite é a minha vida, essa abelha zunindo nos ouvidos, esse choro de mulher que não estanca, rasgando a terra e o próprio ventre.

Ele disse calma, pai, com uma doçura infinita na voz que reconheço como sendo de meu filho, não grite, não reaja, acompanhe os rapazes que eles são do bem. Repetindo, com muito carinho, eles não farão nenhuma ruindade, meu pai, você vai por bem ou por mal.

Meu filho tinha faíscas nos olhos, tinha fiapos nos dentes quando disse olhe a lua, meu pai, veja como ela está linda, e me diga se alguém precisa de testemunha mais sincera.

 

CENA DE CINEMA (1)

A câmera se aproxima do par de tênis abandonado na calçada. Surrados, bem surrados. Número trinta e nove. Um pé tem a lingueta para dentro; outro tem o cadarço ainda meio amarrado. Descalçados às pressas.

A câmera se afasta. Depois se aproxima do corpo: bermuda cáqui, camisa regata, pulseirinha de aço num punho e relógio de camelô no outro. As mãos abertas e os pés sem meias. O buraco preto ainda sangra, bem no meio da testa.

A câmera agora gruda no transeunte, única testemunha:

– Não, não levou dinheiro. Acho que não tinha um puto sequer. Só queria o tênis. Mas acabou se assustando com as buzinas.

A câmera se aproxima novamente do par de tênis. Surrados, bem surrados. Número trinta e nove.




terça-feira, 20 de abril de 2021

 

Flores em vida


Sei que estou no último degrau da vida, meu amor”

Nelson Cavaquinho

 

      A noite ainda discutia se ia ou não embora, mas os negociantes de frutas, legumes, peixes, frangos e bugigangas da feira da Glória já armavam as barracas, entre risadas e assovios, cantos de galo, restinho de neblina virando poeira em direção ao aterro. O homem de cabeça branca e violão no ombro escorregou pelas cordilheiras de paralelepípedos da Rua Hermenegildo de Barros e se deixou levar ladeira abaixo pela Cândido Mendes, até desembocar na Augusto Severo. Encostou o violão no poste e pegou uma talhada de melancia na barraca de Genaro, amigo desde a infância na Praça da Bandeira.

     – Melancia essa hora, meu velho?

     – Combate a ressaca, Genaro.

     – Sai dessa vida.

     – Já tentei. Essa vida é que não quer sair de mim.

     Os cabelos branquinhos, poeira da idade, estão meio desarrumados. Passa a mão e observa que também estão bastante engordurados, purpurinas da madrugada. Lembra de uma criatura a quem amou, que o chamava de cabelos de prata. Fartos e ondulados, reluziam diante do espelho, na luz esfumaçada do cabaré de bandidos do Largo do Estácio. Mas nem tudo que reluz é ouro e a criatura o trocou um dia por um moço requintado, de bigodinho desenhado e cabelos pretos, feito as asas da graúna, tratados na brilhantina Glostora.

     – Me senti um palhaço, Genaro.

     Se já não bebesse bastante, teria começado a beber naquele momento. Doses de angústia depois, fez um samba que dizia assim:

 

                                               “Sei que é doloroso um palhaço

Se afastar do palco por alguém

Volta, que a platéia te reclama

Sei que choras, palhaço

Por alguém que não te ama...”

 

     – Fiz? Fiz. E esse eu sei que não vendi a filho da puta nenhum.

     A vendedora de flores também é amiga. Ela escolhe uma rosa, das mais rosas e mais bonitas, corta o talo e enfia no bolso do compositor. Troca de sorrisos e carinhos, vida que segue, apruma novamente o passo e pega o caminho que não é de casa.

     Ia esquecendo o violão dormindo no poste, mas a florista o chama. Guarda a rosa na barriga do instrumento e toma o rumo da Lapa. Pouco depois está de prosa com o jovem jornalista metido a escritor que bebericava a última no pé sujo da Riachuelo, no fim de uma noitada de fechamento do jornal e das boates da Men de Sá.

     – Eu era muito jovem ainda, assim que nem você. Não tinha respeito pela vida. Nem tinha medo da morte. Foi antes de virar o disco, de virar a mesa, de virar polícia. Fui o pior soldado da história da polícia Militar do Rio de Janeiro. Comecei a vida na farda no Batalhão de Cavalaria da PM, onde fiquei sete anos. Metade em cima do cavalo, metade na prisão. Abandonava a diligência e o animal, picava a mula para o Morro de Mangueira. Jogar conversa fora e cerveja para dentro com Cartola, Carlos Cachaça, Geraldo Pereira, Zé Com Fome, Padeirinho. Para eles, eu fiz um samba assim:

 

“Quando eu piso em folhas secas

Caídas de uma mangueira

Penso na minha escola

E nos poetas da minha Estação Primeira

Nem sei quantas vezes subi o morro cantando...”

 

     Fui o hóspede mais assíduo do xadrez do quartel da Rua Evaristo da Veiga. Mas era bom pegar cana, você sabia? Se não fosse o xadrez do batalhão, eu não teria feito muito samba de sucesso. Às vezes ficava um mês confinado. Então aproveitava a tranqüilidade para compor.

– Começou a vida?

 – Maneira de dizer. Na verdade, antes de encarar o batalhão eu já havia enfrentado

outros batentes para ajudar no orçamento da família. Trabalhei em fábrica de tecidos, em  Deodoro, na função de ajudante de tirador de resíduos, e como auxiliar de eletricista no centro da cidade. Meu pai era tocador de tuba da Banda da PM. Que coisa, hein?! Tocador de tuba.

     – Ainda existe tocador de tuba?

     – Não existe mais tuba. Nem tocador.

     A prostituta de decote farto esparrama os peitos em seu ombro e beija sua testa, os lábios cheios de batom aplicado de qualquer jeito:

     – Paga um conhaque, índio?

     Nem espera pela resposta, sabe qual é. Pede o conhaque no balcão, entorna de uma vez e volta para a calçada.

– Conhece a moça?

– A moça me conhece.

Nem pegou o violão, apenas sussurrou, marcando com as pontas dos dedos na mesa:

 

 

“Não faça vontade a essa mulher

Não deixe ela fazer o que quer

Deve-se ter amizade

Mas não se deve dar liberdade...”

 

 

     – Que história é essa de índio?

     – Minha mãe era paraguaia, índia guarani. Olha os meus traços. Ainda consegue enxergar?  Índia guerreira, que areou muita panela nas cozinhas dos outros, como empregada doméstica em casas de família. Acho que está na hora de ir dormir.

     – Vai, poeta.

     – Sou cantador. Poeta é o Guilherme.

     – Então canta uma das suas com ele. Pode ser Flores em Vida?

     – Só se você prometer que não pede mais nenhuma.

     – Prometo. Mas dessa vez, com o violão.

     Além dos bares, sapatarias, papelarias e lanchonetes começavam a abrir as portas. A mesa já recebera outros notívagos e alguns madrugadores (diúvagos?) para ouvir o índio:

 

“Sei que amanhã quando eu morrer

Os meus amigos vão dizer

Que eu tinha um bom coração

Alguns até irão chorar  ...”

 

     Pára, enjoado e cansado. Toma ar, toma mais um gole e canta mais uns versos:

 

“Por isso é que eu penso assim:

Se alguém quiser fazer por mim

Que faça agora...”

 

     – Flores em Vida. Essa é uma obra-prima.

      – Bobagem. Obra-prima é aquela morena ali.

     Pouco depois desce a 21 de Abril, de braços dados com a morena obra-prima, na direção da Central do Brasil.

     Mas o caminho é longo, e pode ser feito via Praça Tiradentes. Curtos são os degraus da vida. Outros bares, novos amigos, tantas lembranças. Os trocados mastigados no bolso da calça, junto com o maço de cigarros, estão guardados para o ônibus que vai finalizar o trajeto até em casa, quando as pernas pedirem clemência.

     É quase meio-dia e alguém sugere uma rabada, com polenta e agrião, numa pensão da Rua Barão de São Félix. Dessas que permitem violão e cantoria nas mesas. A obra-prima das madrugadas na Rua Riachuelo carrega o instrumento, com a promessa de um amor vespertino no hotelzinho da Rua do Livramento. Ela está sorridente. Ele continua hospedando a tristeza que parece não ter cura. Recorre aos versos do parceiro Guilherme, para casar com sua melodia cheia de flechas sorrateiras:

 

Tire o seu sorriso do caminho

Que eu quero passar com a minha dor

Hoje pra você eu sou espinho

Espinho não machuca a flor

Eu sou errei quando juntei minha alma à sua...”

 

     Amigo tem mania de pedir música, por mais que o artista esteja indisposto. Começa o falatório: “Canta aquela que diz vou abrir a porta para você só porque é dia das mães”. “Não, não, aquela que fala fui bom pra ela, dei meu nome a ela sem saber que estava sendo traído”. A obra-prima tem bom um humor:

     – Vocês só gostam de música de corno?

     O índio velho tem a visão nublada e a memória bastante combalida. Mas no meio da noite ainda lembrava que o resto da tarde foi nos braços dela. Só não lembrava quando nem como chegou em casa, o que não tinha muita importância. A mulher de fé e paciência, companheira das horas difíceis, fez beicinho por conta do longo sumiço. Mas mesmo assim, ao sair para trabalhar, deixou café coado sobre o fogão e um prato de carne assada com batatas dentro do forno. Ao retornar, no fim do dia, o encontrou ainda na cama, estirado, ao lado do violão. A flor atirada sobre travesseiro, também sem vida.

     Botou no velho toca disco um 78 rotações, meio arranhado, com um samba-canção dos mais antigos:

 

“Quando eu morrer, deixarei minha fama

Deixarei no mundo quem me ama

As lágrimas que rolam em meu rosto

Não sabem dizer qual é o meu desgosto...”

 

     Que diabo de desgosto era esse? A companheira nunca soube. Pena que ele não estivesse mais ali, talvez pudesse contar para ela.

 

 

 

 

Dedicado à memória de Nelson Antônio da Silva, o Nelson Cavaquinho (1910-1986). As canções citadas são todas de sua autoria.