quinta-feira, 15 de dezembro de 2022

 

Os caçadores e a caça (Um conto de Natal)

 

     Na volta da escola, caminhando às margens da belíssima lagoa que ilumina e transluz no crepúsculo, o menino vê o homem passar correndo.

     Apenas mais um personagem sozinho no palco, ensaiando o corre-corre da cidade?  

     Seria um atleta profissional, desses que rodam o mundo inteiro em intermináveis maratonas? Ou apenas um corredor de fim de semana, que meia hora depois está todo suado, enchendo a barriga de cerveja ou de água de coco?

     Os pensamentos do menino são atropelados pelo tropel de outros corredores, que vêm correndo atrás do homem.

     Esses parecem bem enfurecidos.

     Agora, o homem parece que foge. E apressa o passo, pois está visivelmente amedrontado.

     Dispara na frente. Não olha para trás. Nem para os lados. E já começa a demonstrar algum cansaço.

     Mantém a cabeça solta no espaço, os pés presos no chão.

     A multidão, enfurecida, grita "Pega ladrão”! Repete: “Pega ladrão”! Agita-se: “Pega ladrão”!

     O menino tenta diminuir o pavor que sente, imaginando que é um filme o que se passa. Um homem a correr sozinho. Muitos caçadores e apenas uma caça.

     Há tanta gente no caminho, cada um vivendo a cena única do seu próprio mundo. Ninguém se dá conta da mais que humana ameaça (quem se preocupa com os que estão ou com os que passam?).

     Quem vai se incomodar com um maluco a correr sem companhia? Com a multidão a gritar enlouquecida? Com uma tarde que, igual a tantas, simplesmente se esvai?

     Só o olho do menino parece ver: os pássaros que buscam o ninho. O sol a se esconder, devagarinho.

     O homem tropeça nas pedras do caminho e cai nas garras dos predadores de garras afiadas. Que prendem o seu pescoço com um laço. E o arrasta pelas ruas.

     Eis o fato consumado, a verdade nua e crua, quando alguém arranca de seu bolso o fruto do roubo roubado: um pedaço de pão bem amassado.

     Nos olhos do menino, dança o olhar do homem.

     Nos olhos da multidão, nunca se viu tanta euforia. É um pássaro? Um avião? Um atleta campeão? É o mais que disputado troféu, agora de braços e pernas abertos, espetado em cruzes imaginárias.

     O homem olha para o céu, desalentado.

     E se pergunta se fora mesmo abandonado.

     O corpo é carregado num desfile de gritos e de luzes.

     Ao fundo, no espelho da linda lagoa que reina indiferente no cenário, o menino vê a imensa árvore que começa a se iluminar.

     Cheia de bolas vermelhas, que parecem sangue.

     A cor da roupa vermelha do Papai Noel.

     E lembra-se que a tarde já é bem tarde, que daqui a pouco é noite. Que precisará estar em casa, com a família, em volta da mesa, comendo rabanada e recebendo presentes.

     Afinal de contas, é Natal.

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Editora Faria e Silva, 2022)




 

terça-feira, 6 de setembro de 2022

 

Café fraco

 

“O tempo

sempre leva

as nossas coisas preferidas no mundo

e nos esquece aqui

olhando pra vida

sem elas.”

(Aline Bei, O peso do pássaro morto)

 

 

     Do jeito que me cataram embaixo da marquise me despejaram aqui, sem uma palavra sequer, de explicação ou de consolo. O sujeito fantasiado de enfermeiro só abriu a boca para dizer “Espera aí no banco, a moça vai fazer sua ficha”. O que tinha as chaves da ambulância na mão não disse nada, e logo voltou ao volante.

     Quando cantaram pneus de novo, certamente para recolher outros infelizes pelas calçadas, a mocinha se aproximou com a prancheta e a caneta na mão, começando a fazer perguntas. Se eu tinha família, moradia, doença grave, e eu tudo não, não, não.

     Na verdade, era tudo sim, sim, sim. Mas naquele momento era melhor não mexer com essas coisas. Com certeza ela não iria entender.

     Depois me entregou um sabonete com cheiro de nada, e uma toalha já bem usada, porém limpa. E também uma roupa que parecia macacão de mecânico, com um escudo no peito. Perguntei que time era aquele e a moça esboçou um sorriso que pelo menos não era antipático, informando que não era de time nenhum, e sim “o símbolo da instituição”.

     Pensei em perguntar que instituição era aquela e a moça passou o comando para um auxiliar com cara de cachorro buldogue, que foi logo latindo:

     – Bora pro chuveiro, velhote.

     Depois do banho me deram um pente, que usei para ajeitar os fios de cabelos brancos. E apontaram na direção do refeitório.

    – Lanchinho, chefia – o buldogue rugiu, agora um pouco mais simpático.

     Sentei-me no banco de madeira duríssima, diante da mesa também de madeira onde o lanche já estava servido. O cheiro de café e o pão com pouca manteiga me encheram a boca de água e fizeram o pensamento buscar lembranças distantes. De um café mais ralo ainda, porque minha mãe reaproveitava o pó até perder a cor, e de um pãozinho apenas lambuzado; para nossas posses, manteiga era um produto dos mais caros.

     O tempo levou a casa e levou minha mãe, mas me deixou com a mania de fazer e de gostar de café fraco. Em casa, a mulher e os filhos reclamam.

     Sim, sempre tive casa. Até hoje eu tenho. Mas como explicar essa história à mocinha, sem causar confusão em sua cabeça e ainda correr o risco de ser mandado novamente para a calçada sob a marquise?

     O buldogue sustentava o plantão na porta do refeitório, ouvindo música em um celular. Estranhei a demora no retorno da ambulância, perguntei pelos outros.

     – Que outros? – ele quis saber.

     – Os demais internos. Não saíram para recolher?

     – Não vem mais ninguém.

     – E os que já estavam antes, antes de eu chegar?

     – Não tinha mais ninguém. Todos receberam alta. Uns sortudos.

     – Como assim? Sou o único preso?

     – Hóspede.

     – Você, a moça e a cozinheira estão aqui apenas para “cuidar” de mim?

     – Chique, não é? – ele comentou, balançando a cabeça.

     Só neste momento me dei conta de que o ambiente não tinha janelas.

     – Vou acompanhá-lo aos seus aposentos – disse o buldogue, com mesuras exageradas.

     Abaixei a cabeça e o segui pelo corredor, com a sensação de estar a caminho do matadouro. Depois de me mostrar a cama de cimento, a pia mínima e o vaso sanitário, ele disse que o café seria servido às sete da manhã.

     – Pode ser fraco e com leite? – eu perguntei.

     Ele apenas sorriu e fez correr as grades. O quarto também não tinha janelas, se hoje já não me falha a memória.

 

quarta-feira, 27 de julho de 2022

 

A vida é troca

     A vida é dura, doutor. Às vezes a gente desconversa, regateia, se finge de morto, pede um desconto. Mas é bem difícil levar alguma vantagem.

     Quem me apresentou o deputado foda foi Fabinho, um velho amigo dos tempos de farda. Caveiramos  juntos, no mesmo batalhão, e pulamos fora, ou fomos pulados, juntos também. Só que fui pra rua sem levar nada nos bolsos ou nas mãos, como diz aquela música, enquadrado no desvio de conduta. Até no xadrez fui parar, como diz a outra. Fabinho ganhou a reserva, até hoje remunerada, pois já era amigo de um deputado mais foda ainda, desses que ficam em Brasília.

     A vida é assim. Cada um carrega a sua cruz. Cada cachorro que lamba as próprias partes. Quem reclama já perdeu.
     Só muito depois eu soube do parentesco entre um deputado e o outro, veja o senhor.  Meu amigo Fabinho é um craque em escolher companhias. A vida é cheia de artimanhas, né não? Quando estamos seguindo com o milho, ela já vem voltando com o fubá, toda serelepe. E taca a broa na cara do abestalhado, do que fica parado na esquina, olhando a banda passar. Fico nada, sigo a banda até onde der.
     Fabinho me levou para falar com o amigo dele lá naquele casarão imponente, onde os deputados todos se escondem. Mas não fomos recebidos ali, e sim num café de rua que fica nos fundos do prédio, desses que servem cafezinho em copo de isopor. Até estranhei, pois foi bem antes da pandemia que colocou um monte de esquisitices em nossas vidas e nos costumes. Estranhei também porque ainda não sacava as presepadas desse pessoal, sempre cheio de manhas e de manias.

     O deputado olhava pros lados o tempo todo, como se estivesse preocupado ou com pressa. Não estendeu a mão quando fomos apresentados. Apenas sorriu um sorrisinho de canto de boca, fez um gesto que parecia bater continência e foi logo querendo saber o que eu precisava.
     "Um advogado", Fabinho se adiantou.
     "Qual é a bronca?", ele quis saber.

     "Homicídio".
     O deputado sorriu:

      "Isso é mole pra nós".
     Virou-se para mim:
     "Trouxe os documentos?"
     "Que documentos?", eu quis saber.
     "Todos. Para a contratação. Fabinho não explicou?”
      "Tenho tudo aqui."

     A vida não faz por menos e assim eu virei assessor do homem. Cargo pomposo da porra. Tenho água gelada, cafezinho, biscoito e até secretária. Salário eu nunca vi. Vai direto pro Fabinho, que repassa pra quem tem que repassar. É um esquema, uma troca, um racha, troço assim, combinação lá deles, normas da casa. O que importa mesmo é que o advogado que eu precisava é amigo do deputado e marcou presença, resolveu a parada com juiz, delegado, o cacete a quatro, e estou livre que nem um passarinho.

     A vida é queda de braço, doutor. Tem que medir com a mente a força do adversário e ir mostrando sua força aos poucos, à medida da necessidade. Faço o trabalho que me mandam fazer e não questiono ordem nem quem ordena. Sabedoria é retesar o muque quando precisa mostrar serviço, mas também deixar o braço arriar na mesa quando o momento exige.

     “Finja-se de doente para ser visitado”, meu pai dizia.

     Assim fui me criando com o homem e com os homens em volta do homem, a tropa de choque, Fabinho sempre à frente. Fazendo só o que tem que ser feito, na hora exata. Eles me dão moral e cobertura. Devolvo com lealdade e silêncio. A vida é troca, doutor.

      O primeiro serviço, digamos assim, de destaque, que caiu em minhas mãos foi o caso da vereadora, que todo mundo está careca de saber. O troço precisava ser feito, por que não pergunte, entrei em cena para agilizar que fosse feito da maneira mais rápida, mais certa e mais limpa. E assim foi. É isso, jogo jogado, vida que segue.

     Depois vieram outras encrencas: empresário (o sócio do deputado que queria bancar o espertinho), fazendeiro (o tal que vendeu a fazenda e depois mudou de planos), membros de associações de moradores metidos em implicâncias e a fazer denúncias, policiais que romperam acordo, compadres nossos que se bandearam pros policiais, essas coisas.

     A vida é encrenqueira, doutor.

     Pode me ligar quando precisar, pois estou aqui e daqui não saio. Só não me faça perguntas cujas respostas não existem ou estão proibidas. Salário pra quê?! Com tanta mordomia, pra que eu quero salário? Prefiro continuar com as gratificações por tarefas cumpridas. Já deu pra sentir que sou bom cumpridor, não foi? O numerário, vamos chamar assim, varia de acordo com a encomenda, a dificuldade ou poder de repercussão que o caso implique, se é que me entende. Entende, né? A vida é, antes de tudo, entendimento.

     O senhor só me diga uma coisa: tenho do que reclamar?

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema". Editora Faria e Silva, 2022)

quarta-feira, 20 de julho de 2022

 

A primeira vez

      Eu jogava futebol de botão no piso da sala quando a ambulância freou na porta de casa. Minha mãe estava no quarto com Dona Carmen, a vizinha rezadeira. Soltava uns gemidos como se fosse uma ovelha parindo, a reza de Dona Carmen parecia novena de velhas misturada com cantoria de meio de feira. Não dava para se entender nada, mas a gente sabia

que era para expulsar o demônio do corpo.

     O cheiro forte das folhas de guiné inundava os corredores.

     Os dois enfermeiros pularam da ambulância de caras amarradas. Carregavam lençóis e cordas, como se fossem caçar um bicho brabo e não socorrer uma doente. Passaram com indiferença por cima dos meus botões de casca de coco, bagunçaram toda a arrumação dos times, e pediram à minha irmã que se afastasse da porta do quarto e fosse chorar na cozinha. Levantei-me para reclamar, não tinham o direito de falar assim com minha irmã, mas acho que nem me ouviram.

     De repente minha mãe parou de urrar e se deixou carregar sem protesto, mansinha feito um boi castrado, um dos homens com o tufo de algodão amassado contra o nariz dela, deixando um rastro pela casa de álcool misturado com não sei o quê. Deitaram minha mãe na maca e a enfiaram pelos fundos da ambulância, que nem vi enfiarem o caixão com Seu Antônio Sapateiro, morto, lá na gaveta do cemitério.

     A lembrança me entristeceu tanto que nem quis mais continuar a partida.

     Dona Carmen deixou o quarto, segurando o galho com as folhas de guiné agora murchas, sem soltar mais cheiro nenhum. Minha irmã começou a arrumar a bagunça que nossa mãe fez no quarto, ainda fungando do chororô. Tia Zefa chegou, trazendo comida numa vasilha de plástico:

     -- Trouxe procês. Sei que não comeram nada até agora.

     Juba enfiou a cabeça pela porta entreaberta, perguntou se eu queria bater uma bolinha. Eu disse que não. Perguntou se poderia jogar botão comigo. Eu disse que não queria mais jogar. Ele abaixou a cabeça e deu meia-volta.

     Meu pai continuava na venda do outro lado da rua, sentado no tamborete, pernas estiradas para frente, pés enfiados na sandália havaiana, copo de cachaça na mão, assistindo à cena como se não fosse nem com ele.

     Foi naquele dia que senti, pela primeira vez, vontade de matar o meu pai.

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Faria e Silva Editora 2022)


sexta-feira, 8 de julho de 2022

 

Cada um sabe de si

       Lucinha chega ao trabalho com uma mão no olho e outro na boca, cobrindo o hematoma no supercílio e o machucado no lábio.

     – De novo, mulher?!

     Eneida. Boa amiga, mas muito intrometida.

     Faz que não escuta. Dá início aos seus afazeres, separando apetrechos do dia a dia, lavando recipientes de água, passando flanela com álcool nas cadeiras usadas pelas  clientes do salão, quase sempre muito resmunguentas.

     As colegas insistem na ladainha que costuma deixá-la aborrecida:

      – Larga esse homem, criatura.

     – Pra você pegar?

     – Deus me defenda – Eneida. Sempre ela.

     Deixa que falem. Quem tem boca diz o que quer.

     – Não vê que ele vai acabar te matando, Lu? Vai a uma delegacia, antes que aconteça o pior.

     As amigas se preocupam, mas nenhuma conhece a fundo o coração de Genival. Por isso o julgam apressadamente. Mas não adianta falar. Até porque o dente não para de doer. Trabalha como pode, secando a lágrima cinza na gola da blusa branca, rádio ligado em cima do gaveteiro, juntamente com esmaltes, acetona, alicates e escovas de cabelo.

     “Inferno. Só música triste”.

     A vida dedicada ao marido e ao filho. Júnior também é nervoso, feito o pai, mas igualmente carinhoso com ela. No fim de semana leva a namorada para comer o macarrão que Lucinha prepara com capricho, elogiado por todos.

     Vê que a menina tem mancha roxa na bochecha e pequeno corte no nariz.

     – Que foi isso, minha filha?

     Pergunta por perguntar. Sabe do que se trata.

     A nora abaixa a cabeça e espalha a mão sobre o rosto. Ela pensa em dizer “Vai à delegacia, antes que aconteça o pior”.

     Concentra-se em tirar os pratos da mesa.

     Cada um sabe de si.

     Deixa a vida seguir a correnteza e vai se equilibrando entre uma braçada e outra. Só não gosta quando se metem em sua vida, o que nem sempre consegue evitar. Genival é assim mesmo, um dia bom e outro mais ou menos. Só fica difícil nos dias diferentes.

     “Se não fosse isso...”

     Está cuidando da cutícula de uma madame quando o celular toca. A vizinha. Ouvira o baque dentro de casa e foi ver do que se tratava. Bateu na porta, ninguém atendeu. Olhou pela janela semiaberta e viu o corpo de Genival estirado na sala, entre o sofá e a cristaleira, olhos abertos para o telhado. Vivo.

      Corre para casa e toma as providências: ambulância, hospital público, emergência depois de muita espera, internação. Genival tivera um derrame, que deixou o corpo parcialmente paralisado. Também não conseguia falar. Só aquele olho duro grudado no teto.

     Depois de um tempo está de volta, no mesmo estado. Não teria melhora tão cedo. Talvez fisioterapia possa ajudar. Mas pagar como? Genival vivia de biscate e nunca guardou um tostão. Bebia o pouco que sobrava.

     – Já arrumou fisioterapeuta pro teu homem, Lu?

     – Ainda não.

     – Não vai arrumar?

     – Vou pensar.

     Cada uma que aparece. Ô, gente danada pra gostar de se meter na vida alheia! Onde já se viu?

     Genival em casa, jogado em cima da cama. Nos fins de semana, o filho aparece com a namorada de olho roxo. Carrega o pai para o sofá e, antes de ir embora, o coloca novamente na cama.

     – Coitado do meu pai.

     Pensa em dizer “Está com pena, leva e cuida”, mas não diz. Sabe que não vai adiantar. Diz apenas, para cortar caminho:

     – Seu pai está bem. Ele aguenta o tranco. É guerreiro. 

     Vez em quando empurra a cadeira de rodas do entrevado até o salão, que felizmente é perto de casa. Ele fica com aquela boca torta e o olho parado nela, parece que acompanha todos os seus movimentos. Dá até nervoso.

     Eneida repara, mas não comenta para não ouvir desaforos.

     Lucinha está mais solta, conversa com as colegas, fala alto, parece outra pessoa. Especialmente no batom e no esmalte que sequer usava antes. Anda com umas ideias na cabeça, mas ainda não teve coragem de comentar com ninguém: arranjar um namorado. Um homem bem forte, que possa ajudá-la a empurrar a cadeira, mexer no corpo do marido de um lado pro outro, dar apoio na hora de trocá-lo, essas coisas.

     Vai ser difícil achar um macho disposto a essa tarefa. Homem é bicho orgulhoso. Mas quem sabe? Imagina-se até se esfregando com o namorado novo no sofá, bem diante de Genival, só para ver como ele reage. Ou morre de vez.

     Se ela tem coragem? Claro que sim. É judiação? Uma pinoia.

     Cada um sabe de si.

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema".Faria e Silva Editora, 2022)



segunda-feira, 4 de julho de 2022

 

Herança

      A nuvem avermelhada manchava o céu desde o começo da manhã, prometendo que o dia não seria como outro qualquer.

     O pai tomou o café às pressas e deu a ordem:

     – Bote uma roupa e um sapato.

     – Ainda não bebi o meu leite – respondeu o filho.

     – Então, beba. E se apronte.

     O pai seguia na frente, pisando duro.

     O menino ia atrás, feito um canguru, aos pulos, tentando acompanhar os passos apressados das pernas bem mais compridas que as suas.

     O pai descia e subia ladeira, virava curva, dobrava esquina, o menino atrás. O pai colava o dedo indicador no anelar, fazia como se fosse uma rodilha que esfregava na testa, recolhendo o suor e atirando longe. O menino observava o pai, o olho espichado, depois o imitava. Mas não conseguia juntar suor entre os dedos.

     O menino gostava de ver o pai fazer aquele gesto, sobretudo do barulhinho que provocava um dedo estalando no outro.

    O menino estava com sede, mas não queria atrapalhar a empreitada que unia os dois e ele nem sabia qual era. O cheiro forte e azedo de suor, que vinha quando o pai levantava o braço, lhe dava mais sede ainda.

     O pai dobrou mais umas duas esquinas e se preparava para enfrentar uma escadaria às escuras, quando parou e chamou a atenção do filho:

     – Agora você vai ver como é que se faz.

     Estancou diante de uma casa pequena e de paredes sujas.

     Meteu a chave na porta e abriu. A casinha era meio escura, parecendo malcuidada também por dentro.

     O pai acenou, convocando-o, e ele foi atrás. Os dois seguiam a chama da luz fraca que vinha do quarto no final do corredor.

     A porta do quarto estava semicerrada. O pai acabou de abrir, empurrando com o joelho, e o menino então viu o homem estirado no chão, um braço preso ao armário de aço por algemas.        

     O homem parecia um bicho. Tinha um olho inchado, machucados na boca, e estava todo mijado. Havia feridas na cabeça, visíveis entre os fiapos de cabelos brancos. Abriu a boca seca, tentando respirar por ela, e o menino notou a inexistência de dentes.

     – Quem é ele? – perguntou o filho, de olhos arregalados.

     – Não se assuste – o pai recomendou.

     O menino ensaiou um choro e gemeu baixinho:

     – Estou com pena dele, pai.

     O pai grunhiu, de um jeito só seu:

     – Guarde os sentimentos e economize tempo, meu filho, que essa peste não merece nenhuma preocupação.

     O menino estava trêmulo. As pernas finas parecendo varas de bambu em meio à ventania.

     – Ele vai morrer, pai? – perguntou.

     – Vaso ruim não quebra fácil – foi a resposta rude.

     O homem encarava o menino, espichando o olho inchado, pedindo ajuda. O menino o evitava, mas quando o encarou por poucos segundos achou que ele chorava.

     – Solta ele, pai, pelo amor de Deus – implorou.

     – Não me peça uma coisa dessas, pois eu trouxe você aqui exatamente para lhe mostrar como é que se faz.

     O menino gritou que não queria saber de nada daquilo e foi saindo do quarto, aos soluços. O pai o seguiu, cercando-o no corredor, sacudindo o menino pelos ombros e falando grosso:

     – Mas vai ter que saber. Vai aprender comigo, como aprendi com o meu pai. Daqui a pouco eu morro e você vai ter que cuidar dessa desgraça aí, que dificilmente morrerá antes.

     – O menino chorava de nervoso e de medo:

     – Por que eu?

     – Porque é a sua herança.

     Quando deixaram a casa, o menino esfregou os olhos na manga da camisa e olhou para o céu.

     A nuvem parecia mais vermelha.

     – Vamos embora. Parece que vai chover sangue – disse o pai.

     E não disse mais nada.

(Do livro "Ainda tem sol em Ipanema", Editora Faria e Silva, 2022)



 

quarta-feira, 29 de junho de 2022

 

A crooner do Norte

 

“De tomara-que-caia, surge a crooner do Norte / Nem aplausos

 nem vaias: um silêncio de morte”. (João Bosco e Aldir Blanc)

 

 
     Hoje eu me lembrei de você, Cauby. É que também cantei, cantei e cantei até sentir vontade de morrer, de sumir, de me enforcar no fio do microfone. Que bonito, que dramático, que patético seria. Cantei até ficar com saudade de ti e dos teus titiriris, Cauby. Até vomitar uma pedra imensa que atravancava o peito, até sentir dor e dó. Uma dó de todos nós que nos apertamos nesse camarim de subúrbio, sem pia, sem toalhas, sem água no chuveiro ou na descarga. Sem produto de maquiagem ou mesmo um sabão para retirar a maquiagem. Só a lágrima cinza a escorrer no rosário de cimento e a lavar tudo, da alma à cara.

     A cadeira é bamba, mas faço um esforço e me equilibro diante do pedaço de espelho desbotado e quebrado, onde vejo o meu rosto também desbotado e quebrado, meus olhos desbotados e quebrados. Ao lado, as fotos do meu filho e de minha mãe, no porta-retrato, com a frase “Meus dois amores”.

     Desbotado.

     E quebrado.

     Ouço vozes no corredor, alguém pergunta se a crooner do Norte já chegou e alguém responde com sorrisos. Para eles, qualquer nordestino é “do Norte”. Não sabem que existe Nordeste ou Sudeste. Para eles, ou é nortista ou sulista. Tem muita gente ignorante neste mundo.

     Escondo a garrafa de cachaça. É vagabunda, mas mesmo assim não aceito dividir.

     “Pede à Patativa da Paraíba para cantar alguma coisinha mais animada. Será que ela não conhece a Comadre Sebastiana? Umas músicas de arrastar o pé? O repertório da Elba? É só choradeira de cortar os pulsos e morrer de dor de corno?”

     E os sorrisos continuam.

     Ainda me lembro, Cauby: “Alguém oferece a alguém e esse alguém sabe quem”, naquele alto-falante da Praça da Matriz, onde o mundo explodia entre as pernas de moça pura de província.

     Fecha as pernas, minha filha. Mocinha de família não se arreganha.

     Abre as pernas, meu amor. Senão fica difícil.

     O pai, depois do malfeito feito:

     Vai embora daqui, desavergonhada!

     Mas eu só ouvia o ronronar do amante, o cavanhaque no meu pescoço:

    “Quem é que te cobre de beijos, satisfaz teus desejos e que tanto te quer?”

    “Quem é que esforços não mede?”

    Minha mãe, que chorou antes e depois, quando pegou o neto para criar. E eu ali a sonhar, Cauby. Não fui, um dia sequer, a Conceição. Mas só eu sei quem foi que, tentando a subida, desceu.

     O mesmo homem de cavanhaque me levou para a pensão de Dona Laura, dizendo tratar-se de uma casa de shows. Puteiro! Da pior espécie.

     A cafetina me vestia, me maquiava. Tratava-me como filha, a filha da puta. Eu invadia a sala, triunfal:

    “Um cuba-libre treme na mão fria, ao triste strip-tease da agonia (...) Lá fora a luz do dia fere os olhos.”

     E me pintei e chorei até borrar a cara com a maquiagem barata.

     Estão batendo na porta, chamando a arara desafinada e embriagada.

     Estou louca para mijar. Vai ser no ralo do banheiro mesmo, pois o vaso está entupido. Esqueci de trazer calcinhas para trocar. Enfio o tomara-que-caia velho de guerra e invado o palco. Surge a crooner do Norte, disposta a sentar a mão na cara do primeiro infeliz desdentado que esfregar as patas em mim.

     Sinto vontade de chorar com Dolores Duran, “Nosso destino quem sabe é Deus, é Deus, é Deus. Briguei, não quero mais você, adeus, adeus, adeus”..., até o desgraçado com os olhos vermelhos de álcool, tesão e ódio gritar “Canta Eu não sou cachorro não, sua vaca!” E eu tentar uns passos trôpegos no palco esburacado, enfiar o pé no taco solto e cair.

    Dura é a vida da bailarina, da cantora ou da menina.

    Quanta saudade de meu filho e de minha mãe, Cauby. Quanta saudade de nós, quanta saudade de ti e de mim. E essa porcaria de remédio com uísque que não funciona?! Já tomei um vidro de um e uma garrafa de outro. Disseram que era tiro e queda...

 

 


 

 

 

 

quinta-feira, 23 de junho de 2022

 

Prelúdio

(A música das ondas)

 

     Dispensou a cadeira de rodas e atravessou o portão do hospital cambaleando. O rapaz da portaria perguntou se alguém o esperava, se desejava um táxi.
     Agradeceu e disse que desejava o mar. E o mar estava logo ali, do outro lado da praça.
     O trajeto de pouco mais de um quilômetro demorou quase uma hora. Mas chegou até lá. Sentou-se na proteção de cimento entre o calçadão e a areia e se livrou das sandálias. Começou a movimentar os pés, com dificuldade; as pernas, depois de tanto tempo entrevadas, não obedeciam.

     O sol da manhã trazia um cheiro distante. Reconheceu como cheiro de vida.  

     Arreganhou as narinas para puxar o ar, que chegava arranhando. Abriu a boca, querendo engolir a maresia. O barulho dos carros, o burburinho dos passantes e os gritos dos vendedores de biscoitos, salgados e bebidas eram neutralizados pela música das ondas.

     Meu Deus, a música.

     As ondas.

     O rapaz do quiosque o cumprimentou. Os meninos que jogavam o altinho acenaram. A menina que passou com a cadeira de praia debaixo do braço sorriu para ele e foi em busca do mergulho.

     Acompanhou, emocionado, os passos compassados da menina. Há quanto tempo não via uma bunda liberta de aventais?

     O amigo dos tempos de futevôlei se abancou ao lado e respeitou o silêncio. Só abriu a boca para dizer que estava feliz com o seu retorno, depois da longa ausência.

     Apenas sorriu e tentou se levantar, mas faltou equilíbrio.

     O amigo o ajudou.

     – Vamos dançar – ele disse.

     – Sem música? – o outro perguntou.

     – Tem música. Escute.

     O garoto freou a bicicleta, olhou, não se conteve:

     – Show!

     E voltou a pedalar.



segunda-feira, 21 de março de 2022

 

Mania de outono

  

Surge a alvorada, folhas a voar

 E o inverno do meu tempo começa a brotar, a minar.

Cartola

 

      Outono era a moringa na mesa forrada de papel crepom. A caneca de alumínio deixava a água fresquinha, gosto de terra no fundo mais fundo, cheiro de chuva no gargalo. Vento encanado que podia constipar, menino remelento de nariz a escorrer pelos lábios. Peito apertado na cor doce e melancólica de um quase maio.

     A mania de outono eu tenho desde muito cedo. Desde bem pequeno mesmo, lá na província, onde as pessoas nem davam muita bola para essa história de estação do ano. Tinha o verão, com aquele calor medonho dos tempos sem ar-condicionado nem ventilador, e o inverno, que trazia frio de doer nos dedos e obrigar a dormir de pijama. Outono e primavera também existiam, mas a esses ninguém dava muita confiança.

     Comecei a prestar atenção no outono no dia em que a professora Alda exibiu o livrão cheio de fotos coloridas, mostrando como a natureza reagia às boas ou más influências climáticas, como se comportava diante de cada uma delas, se derretendo toda quando o outono anunciava a chegada triunfal. O papel do livro ficava mais cheiroso nas páginas que mostravam árvores se descabelando, montanhas abrindo os braços para os dentes do sol que banhavam tudo de um amarelo meio laranja avermelhado, sol que parecia vir de outro mundo e que jamais passara nem mesmo de passagem pela minha cidade.

     Peguei mania e comecei a colecionar folhas caídas na praça, sobre calçadas e muros da alameda que acompanhava o caminho da escola. E passei a observar, encantado, que aquelas folhas meio marrom amareladas disputavam em beleza com os frutos da última primavera, foram verdes sobre verdes no verão que acabou de acabar e estarão renascendo daqui a pouco, no inverno que o vento mais fino já anuncia. Fazia as contas e cálculos das transformações pelas quais deveria passar a minha vida até a explosão do próximo outono.

     Por que o declínio e a decadência? De onde tiraram as explicações encontradas no verbete do primeiro dicionário que me caiu às mãos? Até aquele dia, outono para mim era beleza e renascimento. Coloquei as impressões no poeminha outonal que fez os colegas rirem bastante e a professora condescender um “ele é sensível”. Também li para minha mãe, à noite, enquanto ela lavava pratos. Depois do ponto final, disse “vá dormir, você está cansado”, e até hoje não sei se o comentário significou uma aprovação. Mas a reação generalizada me mostrou que a compreensão do outono é para poucos.

     Quantas vezes, ainda no meu pequeno mundo, me deitei à tardinha sobre a esteira de folhas das palmeiras, da cajazeira, dos umbuzeiros? Cabeça recostada no travesseiro improvisado de outono e os olhos na impenetrável luz dos fotógrafos e dos pintores, até o sol se cansar de mim e fugir para detrás das montanhas. Logo, logo vem o inverno e eu me fecho em copas, que nem as árvores, escondo os meus frutos.

     Catei folhas na volta da escola, na ida para o trabalho, na vinda dos filhos, na despedida dos pais, sem precisar dar explicações para ninguém. Hoje não mais. Recolho apenas as que as máquinas de limpeza não enxergam, escondidas na grama da beira da piscina. Quando eles descuidam, apanho algumas no tonel de lixo. Só que pouco descuidam e os olhos de verão são fogo em brasa nos meus calcanhares.

     Declínio e decadência. O segurança chuta para longe a belíssima folha da mangueira que veio caindo, caindo e se aproximando de mim. A bota do animal quase esmaga os meus dedos, enquanto se aproxima o enfermeiro vestido de inverno, sem uma gota de luz no semblante, bordando um sorriso de falsa primavera, o mundo girando, girando e me devolvendo o outono que ele traz na pontinha da agulha.

(Do livro "Contos da vida absurda". Editora Casarão do Verbo, 2014)



 

 

 

 

segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

Quem que eu era?

 


     Todo dia ele faz diferente, que nem na canção do Chico. Mas hoje, não. Ao chegar, perguntando “Lila, você sabe mesmo quem eu sou?”, vi que o Beto voltava a ser, pelo menos naquele dia, o bom e velho Beto de nunca.

     E vi que isto não seria bom.

     Dia é força de expressão, porque na verdade era à noite que o Beto se transfigurava, inventando personagens que transformavam a nossa cama na galeria mais improvável de tipos humanos.

     “Quem que eu era?”

     E antes mesmo que parasse para pensar, ele emendava:

    “Eu era um marujo grego que chegou aqui em um navio transportando minério. Desembarquei no cais e procurava lugar para tomar uma caipirinha, dizem que a caipirinha daqui é uma delícia, quando conheci você”.

     E vinham ritmos, melodias, acordes e compassos desconhecidos. O nosso quarto hospedava uma orquestra mirabolante, onde os instrumentos nem sempre se entendiam; mas aí é que estava a graça.

     “Beto, só você mesmo...”

     “Não ri, Lila, que desconcentra!”

     E ao contrário do verso de Chico, me desmanchava o vestido, me adivinhava os desejos, e ligava o ar-condicionado, no barulho máximo, para a vizinhança não tirar casquinha em nossas construções harmônicas.

     Deus etíope, intelectual nórdico, cavaleiro negro, senhor de engenho, mercador de joias, construtor de sonhos, diabos e santos vindos nem sei de onde.

     “Quem que eu era hoje?”

     Um valente, gay, um gigolô, um negro, um asiático, um vadio, valetes, rufiões, aventureiros.

     Depois não dormia pesado, botava o disco para tocar, e boca cadeado, corpo fogueira, saía de fininho, deixando o quarto em chamas, sem açúcar, sem afeto, eu e o Chico, eu e o medo, eu e o terço a que me agarrava, contando os rosários até sua volta.

     “Beto, quem você era?”

     Até que hoje o novíssimo personagem que era ele mesmo disse “Não dá mais, Lila, não quero mais, não sou nenhum daqueles, nem sequer sou eu mesmo, Lila”, e foi recolhendo os seus pertences, as lembranças dos muitos e tantos, a bota do caçador, o chapéu do pirata, o cinturão do soldado romano, a espada do Robin Hood, as chaves do carcereiro, o nariz do palhaço, o azedume do senhor do mato, o suor, a salmoura, o lenho, as lembranças, o cheiro, tudo, tudo, e disse fui.

     Corri à janela e ainda o vi dobrando a esquina, pulando em uma perna só, fazendo diferente, vestindo o Saci que jamais despiu para mim.

(Do livro, "Aquela Música", Editora Myrrha, 2016.)